Tem um pano dobrado sobre a cabeça, é um dos panos tecidos à mão por mulheres como as que encontrei no caminho até aqui, diante de teares. Não sei interpretar a expressão desta mulher, talvez a sua seriedade seja uma forma de timidez, ou talvez seja um sinal de incómodo.

Três fiadas de pérolas cobrem-lhe a testa. A pele do rosto é escura, queimada pelo sol, crestada pelos elementos, por este oxigénio grosso. Sobre os ombros e as costas, leva uma pele de borrego, presa à frente por um cordão de lã. O casaco chinês é de vermelho desbotado, gasto por estações, bordado com linha dourada. A saia de branco fino e sujo está segura por um pano tradicional. As sapatilhas imitam uma marca qualquer.

Com um dos pés, pisa a corrente de aço que segura o barco. Tem a outra ponta da corrente enrolada numa das mãos. As ondas breves do lago, miúdas, nunca conseguirão tirar-lho. Esta mulher parece mais forte do que o próprio lago e, no entanto, talvez a gravidade do seu rosto seja o respeito que sente por este lago imenso. Esta é uma suposição, talvez nunca venha a saber ao certo. Estende a mão para me ajudar a entrar no barco. Sinto a pele áspera da sua mão, sinto a força e o calor dos seus dedos.

O lago Lugu cobre a fronteira entre as províncias de Yunnan e de Sichuan. Talvez a forma mais fácil de lá chegar a partir da Europa seja aterrar em Xichang, depois de uma escala inevitável em Chengdu, e fazer uma viagem de carro de quatro ou cinco horas. Esse é um caminho de enormes colinas, gente que vive acampada na berma da estrada, sentada à volta de lareiras, a levantar o olhar à nossa passagem, construções impossíveis nas encostas; paragens para chichi em casas de banho de paredes negras, um homem a vender café, melancia e patas de galinha; rios cheios, enormes barragens; aldeias ou cidades povoadas por gente misteriosa, homens, mulheres e crianças que, na sua maioria, nunca viram um ocidental ao vivo, que nunca foram vistos ao vivo por um ocidental.

«Quem enche a boca para pronunciar a palavra «globalização» e afirmar que agora é tudo igual em toda a parte nunca foi ao interior da China. Aldeias ou cidades povoadas por gente misteriosa que, na sua maioria, nunca viu um ocidental ao vivo nem nunca foi vista ao vivo por um ocidental.»

No nosso mundo, quando dizemos «em todo o mundo» não incluímos aquele mundo. Ignoramos aquelas ruas e aqueles olhares. Não aparecem na televisão, não há filmes sobre eles, não estão referidos em qualquer livro. Não sabemos o que comem, o que bebem, que música ouvem, não sabemos o que pensam. Quem enche a boca para pronunciar a palavra «globalização» e afirmar que agora é tudo igual em toda a parte nunca foi ao interior da China. Na verdade, há muitos lugares onde nunca foi.

A mulher pousa os remos nas águas do lago. Há uma neblina que cobre toda essa superfície. Avançamos devagar entre juncos, afastamo-nos da margem. Em intervalos fortuitos, cruzamo-nos com homens de pé no centro de canoas, escondidos entre a vegetação, esperam por peixes, seduzem-nos com redes invisíveis. Entramos no lago aberto, o céu inteiro, esta é uma imagem saída dos sonhos. Irreal e, no entanto, aqui, diante de todos os sentidos. A mulher que nunca para de remar, como uma máquina viva, é da tribo Mosuo, a sua força e a sua dignidade têm séculos.

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Crónica publicada originalmente na edição de abril de 2018 da revista Volta ao Mundo, número 282.

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