Artigo publicado na revista Volta ao Mundo (nr. 252) de outubro de 2015

A maioria das minhas viagens tem um caráter muito particular. Viajo para sítios de acessibilidade muito reduzida e que não fazem parte de qualquer roteiro turístico. Apesar de se tratar de locais que poucos têm o privilégio de conhecer, o meu objetivo é sempre o de passar o mais depressa possível. Independentemente da beleza da paisagem, da curiosidade que sinta pelo local e da vontade de parar para ficar por ali a saborear o ambiente… não o faço nunca! A prioridade é, realmente, andar muito depressa. Acima de tudo, procuro uma boa classificação porque é de um rali que se trata.

O rali Africa Eco Race (que atualmente corresponde ao que era antes o Rali Dakar) é de todos o mais difícil em que participo, o mais desafiante, o mais desgastante. Consome a nossa energia e ocupa os nossos pensamentos ao longo de todo o ano com o objetivo de nos prepararmos convenientemente para um resultado brilhante. Revivo na memória os momentos que marcaram a última edição.

A partida foi de Saint Cyprien, no Sul de França, para durante quinze dias (entre 28 de Dezembro e 11 de Janeiro) percorrer cerca de sete mil quilómetros, atravessando Espanha, Marrocos, Mauritânia e Senegal e terminar em Dakar, à beira do lago Rosa. Uma viagem longa e com algumas particularidades únicas. Passei os meses que antecederam a prova a correr para o ginásio para ficar em boa forma, a correr para a oficina para garantir que o camião ficasse tecnicamente em condições, agarrada ao computador a dar despacho a todos os aspetos administrativos, a organizar tudo para que nada falhasse. O objetivo era ambicioso. Não podia cometer erros.

Recordo aquela etapa em que cavei durante quatro horas para o libertar. Neste ano passei muito bem e consegui sorrir para as dunas.

Demorei, como sempre, um dia inteiro a fazer a mala, não porque tivesse de combinar malas com sapatos – antes pelo contrário, as T-shirts são todas iguais, apenas tenho de as contar… –, mas pelo simples facto de que vou para o deserto onde nada existe. Se por acaso me esquecer de algo, vou ter de saber vive sem isso. Sigo escrupulosamente a minha lista, mas tenho de ter cuidado com a forma como organizo a mala. Não se trata de uma simples mala, é a minha «casa». Nela guardo roupa, colchão, saco-cama e tudo o necessário para viver quinze dias a competir no deserto. Acampamos todas as noites pois não há hotéis na nossa rota. Dormimos no chão ao som dos geradores e dos motores e, apesar do cansaço, acordamos com frio mesmo que estejamos completamente vestidos. É que as temperaturas à noite rondam os zero graus.

Não conseguimos tomar banho todos os dias porque os duches são ao ar livre e, quando a noite cai, só os mais corajosos se conseguem despir. Continuamos a ter de evitar as casas de banho pois a sanita pousada sobre um pequeno buraco cavado na terra rapidamente se enche, tornando-se impossível passar por perto. Há que esperar que a noite nos esconda. Os arbustos escasseiam.

De Lisboa corremos para Motril (na província de Granada, Espanha) à velocidade lenta de 90 quilómetros por hora pois a organização da corrida permite-nos não ir ao Sul de França para que possamos passar o Natal em família. Aí, as verificações são feitas com algum stress no meio da confusão do porto pois, sem percebermos porquê, o Terratrip (instrumento de auxílio à navegação) avariou durante a viagem. Como sempre, o embarque é tardio e demorado. Já no barco passamos horas de pé para carimbar o passaporte e registar o camião. Esta noite é muito curta. O barco é quase novo e o camarote tem qualidade, mas o desembarque faz-se às seis da manhã e, por volta das quatro horas, já soam bem alto nos altifalantes frases irritantes em todas as línguas que nos mandam libertar o camarote.

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O efeito dessa noite mal dormida vai fazer-se sentir na primeira etapa. Esta vai de Nador a Errachidia, em Marrocos. O troço cronometrado é curto, são 85 quilómetros de pistas estreitas e sinuosas numa paisagem de terra vermelha salpicada de pequenos tufos de erva verde. A paisagem é lindíssima. Sinto-a mais do que a vejo porque a concentração necessária à condução não me dá muita liberdade para a admirar. Vai ser assim ao longo de toda a corrida, mas, mesmo assim, não deixo de me deslumbrar pela magnitude dos sítios por onde passo.

Marrocos é considerado, por alguns viajantes, um dos países mais belos do mundo. Da minha parte confesso sentir-me maravilhada pelos surpreendentes tons de cor da terra, pela nudez das montanhas que nos permite ver toda a sua constituição rochosa e perceber um pouco a sua origem, pelos magníficos palmeirais, pela originalidade da construção magrebina ou pelo ambiente das cidades. Um país maravilhoso, mas muito traiçoeiro para quem quer percorrer o deserto à velocidade máxima.

O terreno é normalmente muito pedregoso e o desgaste nos pneus assustador. As valas encobertas na planície, criadas pelas chuvas escassas, são uma verdadeira armadilha pois não se conseguem ver ao longe e são as causadoras da grande parte dos acidentes. Nestas pistas conduzo muito rápido, conheço todos os segredos desta terra inóspita e não me deixo intimidar. Contudo, logo na primeira etapa percebemos que tínhamos feito opções erradas em relação aos amortecedores. O desgaste do material foi superior ao que esperávamos e este acabou por ser um rali em que sofremos, de princípio ao fim, todas as violentas sacudidelas que o camião nos quis dar. Mesmo assim não desistimos de sonhar. Ganhámos uma etapa e só não ganhámos uma segunda porque os fechos da porta da caixa de carga abriram, obrigando-me a parar.

O dia de descanso foi passado à beira-mar, perto de Dakhla, a cidade mais a sul de Marrocos. No dia seguinte partimos às cinco da manhã, atravessámos o trópico de Câncer e seguimos em direção à Mauritânia. Atravessámos aqueles impressionantes sete quilómetros de «terra de ninguém» e constatámos que as autoridades deste país obrigaram toda a comitiva do rali a registos biométricos, mas, como só dispunham de três computadores, a espera foi interminável. A etapa acabou por ser anulada e a minha equipa de assistência esperou sete horas de pé, sem almoço, na fila para fazer as formalidades da fronteira.

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Apesar das inúmeras vezes que atravessei este país, ele continua a surpreender-me. Aqui a palavra «deserto» faz todo o sentido, pois conseguimos fazer várias etapas sem encontrar uma aldeia, uma pessoa ou uma árvore. A Mauritânia é um imenso mar de areia, com grandes extensões de dunas douradas, lindíssimas. Estas contrastam com as montanhas de rocha muito negra. Paisagens de cortar a respiração.Mas vou com pressa e há outras coisas que me cortam a respiração. A areia mole, por exemplo. Em anos de seca, a areia fica tão macia que as dunas se podem tornar intransponíveis.

O rali Africa Eco Race é de todos o mais difícil em que participo, o mais desafiante, o mais desgastante. Consome a nossa energia.

O camião, demasiado pesado, tem tendência a afundar e nunca sei se vou conseguir passar. Recordo aquela horrível etapa em que cavei durante quatro horas para o libertar. Neste ano passei muito bem e consegui sorrir para as dunas que sempre me fizeram tremer por dentro. Sorri principalmente quando me vi perto dos concorrentes que disputavam os primeiros lugares e os consegui ultrapassar. Contudo, a classificação final estava comprometida. Um problema mecânico obrigou-me a abandonar uma das etapas. Fiquei sujeita a uma enorme penalização. O gozo agora era ganhar etapas.

Se por acaso chover antes do rali, as dunas enchem-se de tufos de ervas. Estas fazem as delícias dos dromedários, mas são um tormento para nós. Um troço de 30 quilómetros de dunas levou-nos quase ao desespero e ao cansaço extremo. É que choveu bastante no ano passado e a areia quase desapareceu. Ficaram as dunas, grande parte delas cobertas de ervas.

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Aqui, as tempestades de areia marcam sempre presença, impedindo-nos de ver, de acelerar e de respirar. É por isso que as tendas tradicionais neste país, onde a organização serve a comida, são muito baixas, obrigando-nos a dobrar pela cintura para entrar nelas.
A última etapa da Mauritânia é marcada por um grande sentimento de alívio. Dobrámos o «cabo das tormentas». Acabaram-se as dificuldades de condução, mas também terminou aquela sensação de paz e tranquilidade que o deserto nos transmite.

Entrámos no Senegal e a fronteira passa-se com grande facilidade. Pela nossa frente temos estradas alcatroadas, inúmeros carros que circulam de uma forma desordenada e sem regras, pessoas que atravessam descuidadamente, motorizadas e carroças que circulam de noite sem luz, animais que nos surgem à frente sem que consigamos perceber de onde vêm. De repente sentimos saudades do deserto, percebemos que o rali chegou ao fim e que tudo se passou demasiado depressa. Andámos depressa – era esse o nosso objetivo –, mas queríamos que o tempo tivesse parado naquela etapa de deserto onde, para além do céu azul e da areia dourada, nada mais havia.

 

Às do volante
Elisabete Jacinto é uma das desportistas portuguesas mais mediáticas, com participações nos mais importantes ralis do mundo. Nasceu no Montijo em junho de 1964, é licenciada e pós-graduada em Geografia e vive em Lisboa. Foi condecorada em 1999 pelo então presidente da República, Jorge Sampaio, como oficial da Ordem de Mérito, é autora de manuais escolares nas áreas da Geografia, Ciências do Ambiente, Ciências Sociais e Formação Cívica, mas também de livros de aventuras em que não falta o desporto automóvel. Além disso, Elisabete Jacinto é bastante requisitada como congressista. Graças à sua carreira e à sua experiência de vida, a piloto é muitas vezes convidada a fazer palestras sobre o empreendedorismo, o trabalho de equipa ou a gestão de risco. São algumas das facetas e dos desafios com que se depara em competições como a que relata agora para a Volta ao Mundo. O rali Africa Eco Race é uma experiência de vida e Elisabete conta-nos tudo a partir de um ponto de visão privilegiado: o volante.

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