Na cidade dos imperadores e do proletariado, do kung fu e das máquinas fotográficas digitais; na cidade do Grande Palácio do Povo, do Grande Salão do Povo, da Praça da Paz Celestial, da Porta da Paz Celestial, da Avenida da Paz Eterna; na cidade do pato lacado.

Fotografias de Alfredo Cunha / Globalimagens


Reportagem publicada na edição de março de 2012 da revista Volta ao Mundo (número 209).

Vale la pena. A guia, chinesíssima, chama-se Ana. La Ciudad Prohibida vale la pena. Quando Ana ri, os seus olhos deixam de ver-se. Ana está sempre a rir ou, pelo menos, a sorrir. La Plaza Tiananmen vale la pena. Aprendeu espanhol com um professor peruano. O marido de Ana é guia para turistas russos. La Gran Muralla vale la pena. Ana não se chama Ana. Esse é apenas o nome que escolheu para usar profissionalmente. Na China, os guias turísticos e aqueles que têm profissões em que lidam com estrangeiros adoptam um nome desse país. Se trabalharem com franceses, podem chamar-se Jean-Paul ou Marie Claire; se trabalharem com ingleses, podem chamar-se Peter ou Kate, por exemplo. Quando se apresentou, disse que se chamava Ana e, a título de curiosidade, referiu o seu nome em chinês. Ao fazê-lo, pronunciou um conjunto de sons irrepetíveis para a maioria dos ocidentais, eu incluído. De facto, quando os chineses dizem alguma palavra conhecida entre nós, feng shui, kung fu, fazem-no com uma pronúncia tão diferente que só a muito custo se consegue reconhecer a palavra em questão. O mais certo é que os chineses se tenham cansado de ouvir os seus nomes mal pronunciados e, com pena das fracas tentativas dos estrangeiros, decidiram facilitar-lhes a vida.

Na Praça Tiananmen, no centro carismático de Pequim, veem-se poucos estrangeiros. No seu espanhol nasalado, Ana apressa-se a dizer que Tiananmen é a maior praça do mundo. Tem 44 hectares, 880 metros por 500. Mas não é por isso que não se veem estrangeiros, é porque, de todo o turismo que existe na China, apenas dois por cento é feito por estrangeiros. Em lugares como a Praça Tiananmen tem-se uma noção mínima daquilo que é um país com 1300 milhões de pessoas, um número esmagador e transcendente. O tempo está nublado, o céu é uma indefinição cinzenta sobre o mundo. Não vale a pena olhar para ele. O céu é uma espécie de nada. Está calor e humidade febril. À entrada da praça é necessário passar por um controlo de metais. Os sacos passam na máquina, as pessoas são revistadas. Já no interior da praça, há milhares de pessoas, quase todas integradas em grupos, a seguirem guias com bandeirinhas. Observando esses grupos, consegue distinguir-se a grande diversidade étnica e cultural da China. As roupas são diferentes, as atitudes são diferentes e, com atenção, até se consegue distinguir as diferenças na língua: dentro do incompreensível, é bastante mais agressiva nuns casos, bastante mais doce noutros, como se estivessem sempre zangados em algumas línguas, como se estivessem sempre a pedir desculpa noutras. Há carrinhas a venderem comidas, embalagens de patas de galinha por exemplo, e bebidas.

Há polícias espalhados por toda a praça. Às vezes, passam polícias em estranhos veículos, que fazem um barulho elétrico de aspirador. O chão é constantemente limpo por mulheres que passam em bicicletas de três rodas, a apanharem com longas pinças até o lixo mais ínfimo. Por todo o lado se vê gente em pose, a tirar fotografias. Mas há também dezenas de fotógrafos a oferecerem-se. Ao mesmo tempo, são muitos os vendedores de postais, boinas e exemplares do Livro Vermelho (1) de Mao Tse–Tung. Ana segue lá à frente. Entre a multidão, levanta uma bandeira portuguesa presa a uma antena de rádio. Apresso o passo. Ana aponta para o Grande Palácio do Povo, onde tem lugar a Assembleia Nacional Popular. Começa então a dizer números: um salão de reuniões com dez mil lugares, o Grande Salão do Povo; uma sala de banquetes com cinco mil lugares, o Salão de Banquetes do Estado.

Continuamos a andar e aproximamo-nos do Mausoléu de Mao. Está rodeado por filas imensas, organizadas por separadores que as fazem ziguezaguear na distância. Ana comove-se ao recordar que, nos anos setenta, participou na sua construção. Explica então que as quatro estrelas mais pequenas da bandeira da China se referem às quatro classes sociais mais importantes, a estrela maior representa o Partido. «Praça Tiananmen» significa «Praça da Paz Celestial», começamos a atravessá-la. Vale la pena. Para Ana, tudo vale a pena. É uma otimista. Dirigimo-nos à Cidade Proibida que, na China, se chama apenas Palácio Imperial. Entre a praça e o palácio, está a Avenida da Paz Eterna. A avenida mais longa do mundo. Quando Ana começa a falar de Pequim, não demora muito até referir alguma coisa que seja a mais longa, a mais alta ou a maior do mundo. Foi na Avenida da Paz Eterna que, em 1989, um homem ficou parado à frente de uma coluna de tanques. Acredito que Ana não quisesse falar sobre isso. Não é a única. Até hoje, ainda não se conhece a identidade desse homem.

A entrada na Cidade Proibida é feita sob um retrato gigante de Mao, pela Porta da Paz Celestial, talvez a imagem mais conhecida da China em todo o mundo. Ana começa imediatamente a enumerar os exageros históricos do lugar onde chegámos. O imperador tinha mais de duas mil concubinas, que lutavam entre si por poder. Era servido por cerca de seis mil e quinhentos eunucos, castrados para garantir que não se interessavam pelas concubinas. As medidas de segurança eram bastante rigorosas. O piso da sala do trono tem 15 camadas diferentes, para evitar a ameaça de túneis. As concubinas chegavam nuas ao encontro do imperador para que se garantisse que não levavam facas. O isolamento do exterior era enorme. Só uma vez por ano, a 9 de setembro, as concubinas tinham autorização para subir a uma elevação do jardim imperial e, daí, observarem a vista sobre os muros. Mas não faltava espaço. O palácio ocupa uma área de cerca de 72 hectares. Se alguém passasse cada noite numa divisão diferente do Palácio Imperial, só voltaria a repetir uma divisão após 27 anos. E o maior buda de sândalo do mundo, o maior sino do mundo. Vale la pena.

Sim, vale a pena, mas aquilo que chama mais a atenção na Cidade Proibida é o modo radical como deixou de ser proibida. Atualmente, recebe cerca de oito milhões de visitantes por ano. Estando lá, esse número não surpreende. Marés de pessoas seguem pequenas bandeiras e ouvem explicações, talvez semelhantes às que Ana dá em espanhol. Muitas vezes, os guias utilizam megafones que lhes distorcem o chinês. Aliás, um preconceito que cai muito rapidamente é aquele que descreve o povo chinês como silencioso e discreto. Quando em grupo, as vozes elevam-se sem limites: vozes de homens, de mulheres, de crianças.

Além disso, na Cidade Proibida, à entrada dos templos, da sala do trono ou de todos os lugares que chamem mais a atenção do ponto de vista turístico, há uma espécie de luta corpo a corpo coletiva. Gente empurra-se, levantando as máquinas fotográficas ou de filmar sobre a cabeça, tentando registar qualquer imagem. Para esse cenário contribui o facto, comprovado sem exceção, de os chineses se meterem à frente nas filas. A falta de misericórdia é total. Se alguém deixa um espaço mínimo entre o seu corpo e o da pessoa que está imediatamente à frente, vem alguém de algum lugar e, sem dar explicações, enfia-se nesse espaço. Se for preciso empurrar, empurra.

Numa pequena casinha do jardim imperial, consegui estar alguns segundos sozinho. Sem ninguém à minha volta, reaprendi a respirar e apreciei toda a paz que, normalmente, dou por garantida. Paz celestial talvez. Voltei a tê-la à noite, no hotel, deitado sobre a cama, com rostos de todas as formas a sucederem-se na minha memória, com a voz de Ana, vale la pena, vale la pena, a repetir-se como uma canção que não sai da cabeça. Mais tarde, liguei a televisão e assisti a programas que tentava entender apenas a partir das imagens, dos gestos e do tom com que se falava. Em certa medida, países com a distância cultural da China são assim. Mesmo quando há a oportunidade de conversar com alguém que fale uma língua que consigamos entender, os valores e os conceitos são tão diferentes que fica sempre a sensação de incompreensão. As palavras têm significados diferentes porque o mundo todo tem um significado diferente. Os comportamentos têm significados diferentes. E não me refiro apenas às cuspidelas abundantes que os chineses, homens e mulheres, novos e velhos, lançam para o chão sem cerimónia. Refiro-me sobretudo aos comportamentos mais comuns, às reações, à forma como olham.

Na manhã seguinte, entro sozinho para o elevador do hotel, carrego no botão, desço dois ou três andares e, plof, o elevador fica parado. Eu fechado num elevador na China. Carrego no botão do intercomunicador. Responde uma voz feminina em chinês. Em inglês, digo que estou fechado no elevador. Ouço um barulho, como se tivessem desligado. Repito «alô» duas ou três vezes, sem resposta. Após alguns segundos, uma voz masculina em inglês. Volto a explicar que estou fechado no elevador. Diz-me qualquer coisa que não entendo sobre o pequeno-almoço. Entretanto, chega uma terceira voz, também masculina. Falo-lhe do elevador. Pergunta-me o número de quarto e pede-me para esperar um momento. Espero. Um momento, dois momentos. Volto a ouvir a voz no intercomunicador, diz apenas «ok» e desliga. Continuo a esperar e após alguns minutos, começo a ouvir barulhos no lado de fora. A porta abre-se. Grandes sorrisos, saio. Entro no elevador do lado e desço.

Na China, os hotéis são os lugares onde o visitante pode encontrar alguém que fale inglês. Fora dos hotéis, essa expetativa não é realista. Assim, é fundamental sair com um cartão do hotel e pedir na receção que escrevam com carateres chineses os destinos onde se pretende ir. Esse cartão permitirá a comunicação com os taxistas. O cartão daquele hotel tinha várias possibilidades de destinos já impressos, desde o Templo do Céu à rua de restaurantes Gui Jie; tinha também frases úteis como «por favor ligue o ar condicionado», «por favor abrande», «quero fazer um telefonema»; mas o lugar onde eu queria ir não estava nas opções da lista. Eu queria ir ao hutong de Dazhalan (2).

Os hutongs são bairros populares, de casas baixas e ruas estreitas. Neles, é possível encontrar um pouco da vida anterior aos Jogos Olímpicos de 2008, anterior às enormes torres de betão. Caminhando pelas ruas dos hutongs, descansa-se dos grupos de turistas e, olhando em volta, tudo é novidade. Muita comida à venda: ovos de casca azul, ovos de casca preta ou ovos de casca normal, mas mergulhados num líquido preto; massa frita com as mais diversas aparências a ser preparada em grandes frigideiras cheias de óleo sobre fogões ligados a botijas de gás; utensílios redondos de bambu encaixados uns nos outros, pilhas grandes desses utensílios onde se cozinham pequenos pães a vapor ou bolinhos de massa cozida recheados de carne ou vegetais; sacas com arroz de vários tipos; pedaços de carne, partes do corpo de animais que não tentam disfarçar a sua origem, quantidades enormes de fígado e de miúdos; peixes vivos a tentarem nadar em alguidares sobrelotados. Tudo com cheiro. E também as pessoas: homens com as camisas levantadas até debaixo dos braços, a arejarem a barriga, postura muito frequente perante o calor; mulheres de bicicleta com os rostos tapados por lenços ou a pé, a empurrarem carrinhos de mão; crianças de dois ou três anos a usarem calças abertas no rabo, entre as pernas, para facilitarem o alívio rápido em qualquer canto; e, todos, aqui e ali, homens, mulheres e crianças, de cócoras, com os joelhos quase a tocarem nos ombros, apenas a verem quem passa. Por cima, na nesga de céu, um emaranhado de cabos, impossível de desembaraçar.

Cuidado cabeza. Quando há a mínima possibilidade de bater com a cabeça, como à entrada da carrinha por exemplo, Ana está lá a avisar. O motor da carrinha é ligeiro. Após cinquenta quilómetros chegamos a Juyongguan (3). A quantidade de turistas não chega para ofuscar a imponência da Grande Muralha. A forma como se estende, serpenteando por montes a perder de vista, é aquilo que se conta, aquilo que se imagina e mais ainda. Não há expetativa demasiado grande que estrague a grandiosidade desta construção única. Neste ponto da muralha, caminhando, tanto nos troços mais planos e amplos, como nos mais íngremes e difíceis, é quase impossível não passarmos à frente de nenhum fotógrafo. O número de possibilidades de pose com os dedos em «vê» de vitória é imenso. Pessoalmente, compreendo fotografados e fotógrafos. Avançar pela muralha até ao topo de um monte é uma experiência intensa. As máquinas fotográficas foram inventadas para tentar captar um pouco. A paisagem estende-se até aos limites da visão, até ao ponto em que o planeta encurva. Ao longo dessa distância, em todas as direções, há montes verdes. A Grande Muralha avança sobre eles, ultrapassa-os e segue sempre, exatamente como se fosse infinita. Ana tem razão: la Gran Muralla vale la pena.

A carrinha avança a toda a velocidade pelas ruas de Pequim. O tempo continua encoberto, nuvens ou poluição. Ana chama-me «general». Todos os dias, de manhã, me diz que estou mais bonito do que no dia anterior. Descansado, lindo, deslumbrante, pronto para mais um dia em Pequim, vale la pena. Quando complemento alguma das explicações de Ana com algo que li no guia ou que já sabia, ela muda de voz e diz: general inteligente, general muy sábio. De nada serve pedir-lhe para não exagerar, Ana fala até querer, sempre, sem parar. Às vezes, desligo, deixo de ouvi-la e fujo pela paisagem da janela.

Os edifícios enormes, milhares de janelas, dezenas ou centenas de milhares de janelas, milhões de janelas. Ana diz que está de acordo com a política de controlo de natalidade. Menos filhos, melhor nível de vida, diz ela. A sua filha nasceu em 1978. São os imperadores, diz Ana. São muito mimados, as pessoas chamam-lhes «imperadores». Olho para os passeios, vejo homens de fato e homens a carregarem frutas presas nos dois lados de uma vara assente sobre os ombros, vejo mulheres com chapéus de sol e com os braços cobertos por um acrescento às mangas curtas, que colocam apenas na rua. As mulheres chinesas não suportam o sol, evitam-no ao máximo. A carrinha vai na direção de uma multidão a atravessar numa passadeira, não abranda. São as pessoas que se afastam. Ana continua a falar, ainda não parou, conta que a sua sogra estava contra o casamento porque Ana é do signo dragão e o marido é tigre. Custou-lhe, mas acabou por aceitar quando percebeu que Ana era boa esposa. Sorrio-lhe.

Os milhares de anos de história não são aquilo que mais se impõe ao olhar do visitante. Pequim já não tem avenidas ocupadas apenas por ciclistas. Existe mesmo a estranha sensação de que tudo o que está à vista será radicalmente diferente dentro de pouco tempo. A tensão silenciosa da mudança sente-se até no betão, matéria outrora estática. Há a sensação de que se está a ver algo que desaparecerá. Visitar Pequim daqui a dois anos será visitar outra cidade. E não são poucos os momentos em que se fica frente a frente com chineses e em que os olhares se encontram numa falta mútua de entendimento. Eles dizem qualquer coisa que não entendo. Eu digo qualquer coisa que eles não entendem. Só quase no fim da minha estada percebi que, em chinês, «Portugal» não se diz «Portugal», diz-se «Putoiá». Foi também nesse momento que fiquei a saber que, em chinês, «China» não se diz «China», diz-se uma palavra que não sou capaz de reproduzir.

Notas de rodapé
1
Conjunto de citações de discursos e ensaios do líder chinês, publicado de 1964 a 1976 e distribuído durante a Revolução Cultural.
2 Provavelmente a mais antiga e famosa rua de comércio da capital chinesa. Recebe mais de duzentos mil visitantes por dia. Construída durante a dinastia Ming (1368-1644).
3 Uma das três maiores passagens da Grande Muralha da China, juntamente com Jiayuguan e Shanhaiguan.

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