Há sabores para descobrir durante todo o ano no concelho do Fundão, na Beira Baixa. Seja na cidade, nas aldeias históricas ou entre as serras da Gardunha e da Estrela.

Texto de André Rosa
Fotografias DR


Reportagem publicada originalmente na edição de janeiro de 2020 da revista Volta ao Mundo (número 303).

À hora de jantar, o termómetro do carro indica 4,5 graus Celsius. «Quando cai neve na serra da Estrela fica sempre mais frio aqui», diz Patrícia Ramos, técnica de turismo no município do Fundão. Mas o frio não afasta as pessoas que começam a encher as ruas de Alcaide, a pequena aldeia do concelho que costuma atrair 30 mil visitantes com o Míscaros – Festival do Cogumelo, que se realiza há 11 anos.

Os bombos de Lavacolhos tomam conta da rua. «São o grupo de bombos mais reconhecido do país e costumamos dizer que é o som que faz estremecer o coração», diz Patrícia elevando a voz sobre o ribombar dos instrumentos. Os homens apoiam-nos numa perna e batem com a maceta vigorosamente na membrana de pele de cabra, casando o som com a melodia de um pífaro beirão.

O festival estende-se por meia dúzia de ruas e largos e oferece muito que ver, fazer, comprar e saborear à volta do cogumelo, como animação de rua com cavalos alados e figurantes ou as sessões de cozinha ao vivo dadas por chefs. Passeia-se entre bancas de artesanato e compram-se cogumelos em saquinhos. Muitos jantam em tasquinhas e no Fiado Restaurante, que por estes dias costuma mudar-se da aldeia Janeiro de Cima para a Casa Cunha Leal.

Os rissóis de cogumelo e cogumelos recheados chegam à mesa para abrir o apetite para os pratos regionais, como o arroz de carqueja, carne e enchidos. Como sobremesa, a população faz um périplo por casas cheias de calor humano e em que o corpo se aquece com licores de tudo e mais alguma coisa (inclusive de cogumelo). A segurança alimentar dos cogumelos confecionados no festival é garantida pelo Centro de Recolha do Cogumelo, instalado na antiga cantina da escola básica de Alcaide.

Um passeio micológico

Os recoletores de cogumelos silvestres devem levá-los ali para que sejam lavados, pesados, certificar se são, ou não, comestíveis e para serem avaliados conforme espécie, quantidade e estado de conservação. «Todos os anos há um curso para formar as pessoas», conta o responsável Vicente Atalaia, e existem quase setenta pessoas coletadas no concelho. O objetivo é promover a segurança alimentar do cogumelo e organizar o mercado.

Boletos, míscaros brancos e amarelos, raivacas, cantarelos e frades são os tipos de cogumelo que a população mais apanha na serra da Gardunha, sabendo que são seguros. Mas para apanhar cogumelos é essencial saber do assunto. E José Matos, de 73 anos, é um dos especialistas. Ex-comissário de bordo da TAP, mudou-se há 13 anos para o Fundão para «fugir aos aviões» e recuperou uma quinta, de vinte hectares, cheia de cogumelos. Chamou-lhe Quinta Vale d’Encantos. «Sem sair daqui, identifiquei até hoje 233 espécies, 40 por cento delas comestíveis» (só na serra da Gardunha estão identificadas 400). Muitos deles escondem-se debaixo da folhagem outonal e é José Pedro, o seu ajudante, que os deteta e coloca no cesto de vime que leva debaixo do braço, para que «vão largando os esporos» (um pó microscópico) que asseguram a sua reprodução.


Dormir numa solar do século XVII

O Cerca Design House é um dos sítios em que se pode pernoitar, perto do Fundão e a meia hora de carro da serra da Estrela. Instalado num solar recuperado do século XVII, que pertenceu à família do morgado de Chãos durante oito gerações, conjuga a sobriedade da pedra com o contemporâneo e o conforto da decoração. Tem dez quartos e cinco villas para até quatro pessoas (equipadas com kitchenette e com pequeno-almoço servido à porta), piscina exterior exclusiva, jacuzzi interior e um pequeno bar.


José Matos viaja pelo quarto reino da natureza (os cogumelos são fungos e surgem depois dos reinos animal, vegetal e mineral) sem sair da quinta, mas também recebe muitos estrangeiros. Aprendeu as bases com o engenheiro agrónomo José Luís Gravito Henriques, «um dos maiores conhecedores de cogumelos em Portugal», e lançou-se ao estudo deste fruto do fungo, tornando-se entendedor a ponto de integrar agora um grupo de especialistas italianos, a nação «que mais sabe sobre cogumelos na Europa».

A meio do passeio micológico, José Matos aproxima-se de vários Amanita muscaria, vermelhos e com bolinhas brancas a lembrar os cogumelos de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll. Atenção: este é mortífero e pode em algum momento ser confundido com o Amanita caesarea – esse sim, comestível. «No império romano só os imperadores o podiam comer. É muito bom fatiado com azeite, sal e pimenta», aconselha. Em caso de dúvida sobre a toxicidade de um cogumelo, não o coma, seja cru ou cozinhado.

Subir às aldeia de montanha

A quinta, mantida quase selvagem, é também produtora de cerejas e habitat de javalis, veados e lontras. A paisagem confunde-se com a da serra da Gardunha, que guarda a vegetação mediterrânica original, marcada por matas de pinheiros e carvalhos. Na primavera, o espetáculo branco das cerejeiras em flor atrai milhares ao Fundão.

Enquanto não há cerejas para colher e os cogumelos abundam na terra e no prato, vale a pena partir à descoberta de outras paragens, sem sair do concelho, como a aldeia de Castelo Novo, uma das 12 Aldeias Históricas de Portugal. O topónimo recorda a génese do povoado medieval que ali se instalou e ergueu um castelo, sobre a rocha granítica, há 817 anos. Com o primeiro foral atribuído desde 1202 por D. Sancho I, a aldeia viu parte da fortificação ruir, já em 1755, restando parte da torre de menagem (visitável), a 350 metros de altitude.


Lendas e ateliês

São várias as lendas associadas às 12 Aldeias Histórias. Castelo Novo tem a lenda da bruxa Belisandra, que versa sobre uma suposta bruxa ostracizada pela população, mas que foi salvação para uma praga de gafanhotos que atacara os campos. A história foi reinterpretada e deu origem a fantoches e bonecos feitos por crianças na Galeria Manuela Justino. Já na Casa das Tecedeiras, em Janeiro de Cima, fica a conhecer-se o ciclo do linho e pode contribuir-se para um tapete coletivo trabalhando num tear original. Tapetes, mantas do tempo das bisavós, cachecóis e panos de linho são alguns dos produtos que ali vendem.


O monumento mais antigo é, porém, uma lagariça, datada entre os séculos VII e VIII, que servia para a pisa da uva e a recolha do mosto. Numa volta pelas ruas estreitas e forradas a O monumento mais antigo é, porém, uma lagariça, datada entre os séculos VII e VIII, que servia para a pisa da uva e a recolha do mosto. Numa volta pelas ruas estreitas e forradas a granito encontram-se também a Igreja de Nossa Senhora da Graça, do século XVIII, com o símbolo da Ordem dos Templários no arco; e o chafariz D. João V, incrustado numa das arcadas da Antiga Casa da Câmara.

A dureza do granito marca o aspeto da vila de Alpedrinha, cujas fundações datam do tempo romano (há 1900 anos). Tal é visível na estrada romana que atravessava a serra para norte, e que hoje encaminha os visitantes até ao Palácio do Picadeiro, em frente do qual se tem uma vista panorâmica sobre a vila e, com sorte, até Espanha. O edifício data do século XVIII e confirma que muitas famílias brasonadas ergueram ali os seus refúgios, tornando a vila importante e próspera. Em baixo, encontra-se a Fonte D. João V, do século XVIII, «o maior chafariz da Beira Interior», destaca Bruno Fonseca, técnico de turismo. A Igreja Matriz, a Câmara Municipal e a Capela de Santa Catarina são outros pontos de interesse. No terceiro fim de semana de setembro, a vila organiza o Chocalhos – Festival Caminhos da Transumância, que valoriza a tradição antiga de os pastores do Baixo Alentejo levarem grandes rebanhos para o topo da serra, onde o pasto era abundante nos meses de verão.

Já na aldeia de Janeiro de Cima, uma das 27 Aldeias do Xisto, a paisagem ganha outras cores. As ruas são igualmente sinuosas, tendo a igreja ao centro, e são tão apertadas que lhes chamam «quelhas» e só permitem a passagem de uma pessoa de cada vez. Por estar à beira do rio Zêzere, antigamente a travessia de gentes e mercadorias fazia-se em barcas. Hoje servem passeios de lazer a partir do Parque Fluvial da Lavadeira, equipado com tudo o que é necessário para ali passar férias no verão. Pretextos não faltam para visitar o Fundão durante todo o ano.


Guia de viagem

Ficar
Cerca Design House
Largo da Praça, 1, Chãos (Donas)
Tel.: 275759060/ 964756466
Web: cercadesignhouse.com
Quarto duplo a partir de 70 euros por noite com pequeno-almoço.

Comer
Fiado Restaurante
Rua do Espírito Santo, 5, Janeiro de Cima
Tel.: 272745024/926877314
Web: facebook.com/restaurantefiado
De terça a sábado, das 12h00 às 15h00 e das 19h00 às 22h00. Domingo, só almoço. Encerra segunda.
Preço médio: 18 euros

Fazer
Quinta Vale d’Encantos
Alcaide, Fundão
Tel.: 966205064
Passeios micológicos de uma hora a partir de 15 euros por pessoa. Com degustação, 20 euros; com almoço, 25 euros.

Centro de Recolha do Cogumelo
Rua dos Combatentes do Ultramar, Alcaide
Aberto sob marcação.

Visitar
Galeria Manuela Justino
Rua Professor Gonçalves Goucho, Castelo Novo
Tel.: 275779060
De segunda a domingo, das 09h00 às 12h30 e das 14h00 às 17h30.

Casa das Tecedeiras
Rua do Paraíso, Janeiro de Cima
Tel.: 936656651/275779040
Diariamente, das 13h30 às 17h30.
Entrada: 1 euro


Com o apoio da revista Evasões

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