A cadela com sobrancelhas está sempre deitada perto das bilheteiras do funicular.
O templo Wat Doi Suthep, muito perto de Chiang Mai, no norte da Tailândia, fica no topo de uma elevação com o mesmo nome do templo. Depois de quilómetros de curvas seguidas que, incrivelmente, algumas pessoas decidem fazer a pé ou de bicicleta, chegamos a um lugar onde se vende de tudo: água de coco, aberta à nossa frente com um machado, tigelas budistas para meditação, mil camisolas e porta- -chaves. É aí que ficam estacionados os carros e autocarros. Então, há duas formas de chegar lá a cima, ao templo: as grandes escadas, com 309 degraus, e o funicular. Não sei como se chama a cadela, mas está sempre lá. As vendedoras de bilhetes de lotaria ou de pequenos sinos para fazer promessas conhecem-na bem. Quando veem os estrangeiros admirados com a cadela, essas mulheres riem-se sem dentes.
Prefiro visitar o Wat Doi Suthep ao fim do dia. Há muito menos gente e, lá em cima, mais perto do céu, as chapas douradas do chedi refletem o sol como se elas próprias fossem o sol. Chedi é o nome da estrutura arredondada e pontiaguda, onde se guardam relíquias religiosas. Uma grande parte do templo é dourado e, sob o calor, todo ele fica incandescente, até as muitas estatuetas de Buda, cobertas por milhares de pequenos quadrados de folha de ouro que os fiéis compram por devoção e colam nas figuras.
«As vendedoras de bilhetes de lotaria ou de pequenos sinos para fazer promessas conhecem-na bem.»
Ao fim da tarde, quando o ar arrefece e talvez até se sinta uma brisa, é mais fácil pisarmos o chão descalços, depois de passarmos a entrada onde toda a gente tem de tirar os sapatos. A essa hora parece-me que as cerimónias ganham mais sentido: caminhar à volta do recinto com uma flor de lótus diante do peito, enquanto se recitam orações; ouvir as explicações do monge num canto, ao lado de um altar, de joelhos e com a cabeça baixa; queimar incenso, espetá- -lo nos potes de areia e cinza; agitar o copo com varetas de bambu, ver qual cai primeiro, retirar o papel com o número correspondente, conhecer a sorte.
Além disso, ao fim da tarde, a vista sobre Chiang Mai é deslumbrante: linda cidade sem arranha-céus, tão serena àquela distância, apenas os caprichos brandos do rio Ping, os canais retos à volta da muralha e da cidade antiga. Quando estou diante dessa paisagem, antecipo sempre os caminhos que farei nessas ruas, penso: daqui a pouco, estarei lá em baixo. E, enquanto o olhar avança nessa distância, os sinos tocam constantemente no templo e acrescentam beleza à melancolia.
Faço a descida pelas escadas, os corrimões são longas serpentes Naga, uma criatura mitológica com várias cabeças, muito reverenciada e temida. Já em baixo, passamos pelas meninas da tribo Hmong, que tiram fotografias em troco de alguns bahts. E voltamos a encontrar a cadela com sobrancelhas.
É branca, pintam-lhe as sobrancelhas com um lápis de maquilhagem e está sempre lá, lenta e deitada, habituada a multidões e à curiosidade. Espero vê-la em breve, quero muito voltar a fazer-lhe uma festa.
Imagem de destaque: Direitos Reservados
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Crónica publicada originalmente na edição de setembro de 2020 da revista Volta ao Mundo, número 311.
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