Cinco séculos depois de Fernão de Magalhães atravessar o estreito de Todos-os-Santos e descobrir a única passagem natural entre os oceanos Atlântico e Pacífico, o navegador português mantém lugar de honra. Embora não se saiba se desembarcou para pôr os pés nesta terra, foi o primeiro europeu a chegar – o primeiro de dezenas, centenas, de imigrantes, que muito mais tarde atravessaram também eles um oceano para construir uma casa no fim do mundo.

Texto de Mónica Bello


Artigo publicado originalmente em novembro de 2014, na revista Volta ao Mundo (número 241).

Os seixos rangem a cada passo sob o peso das botas na estreita praia a uma dúzia de metros da Ruta 255, a estrada que, para leste, leva o viajante para a Argentina e que, para ocidente, morre quando encontra a Ruta 9 que segue até Punta Arenas, a capital da XII região chilena de Magallanes y La Antártica – a mais austral, a mais vasta e a segunda menos povoada do país. Turista que passe por aqui não resiste a largar o carro na berma e descer até àquela praia no estreito de Magalhães para ver de perto as duas velhas glórias encalhadas junto às águas geladas e que o Chile elevou a monumentos nacionais há quatro décadas. Aqui jaz o que sobra do Amadeo e do HMS Ambassador, dois dos inúmeros navios que fizeram história no estreito.

O Amadeo foi o primeiro vapor inscrito no porto de Punta Arenas, o primeiro a iniciar a navegação a vapor re­gular na região em 1892 e o primeiro navio da companhia de navegação de José Menéndez, espanhol rijo das Astúrias, um dos pioneiros do desenvolvimento de Punta Arenas, até onde a vista alcança e de muito mais para além disso. Os interesses de Menéndez eram vastos, mas o vapor terá tido lugar especial no coração do homem de negócios. Quando o navio deixou de ter serventia, foi por sua expressa vontade – deixada em testamento – que o vararam na praia sobranceira à estância San Gregório, que também foi sua. Já Menéndez deixara o mundo dos vivos há década e meia.

Era também propriedade do asturiano o Ambassador, clíper dos tempos áureos da famosa Rota do Chá. Lançado à água em Inglaterra em 1869, nunca foi campeão de velocidade na travessia da China à Europa, mas era visita regular no estreito de Magalhães. De armador em armador, quando os anos começaram a pesar-lhe para a navegação, acabou por aqui mesmo, a servir durante 40 anos como pontão marítimo de armazenagem, sobretudo da lã de ovelha que as fábricas europeias importavam deste Sul do mundo. À semelhança do Amadeo, em vez de o desmantelarem, foi varado na mesma praia onde sobra hoje o seu imponente esqueleto em ferro, que os ventos e as águas geladas do estreito vão lentamente corroendo. Subir a bordo do Amadeo não é difícil. Percorre-se ainda o interior e chegados ao ponto mais alto, à proa, apetece demorar por ali mais algum tempo dando a volta ao horizonte.

Do outro lado da estrada chega o som de uma chapa de alumínio que bate ao sabor do vento ainda brisa da manhã. Os velhos armazéns de paredes metálicas da estância San Gregório que interrompem a paisagem desértica de um lado e do outro da 255 parecem restos de uma cidade-fantasma. Um cavalo passeia à solta junto à praia e lá longe, bem longe, do outro lado das águas estranhamente calmas, estende-se uma longa sombra onde começa a Terra do Fogo e, mais além, os Andes acabam por se afogar nas tormentas do cabo Horn. O mesmo horizonte, onde Fernão de Magalhães e os seus homens avistavam plumas de fumo a subir aos céus e as noites traziam o brilho do fogo que os inspirou a dar o nome àquela terra inóspita. Fogueiras ateadas pelos índios selknam, raios de trovoadas silenciosas vindos dos céus, ninguém saberá ao certo.

A paisagem não terá mudado muito nos últimos 500 anos, desoladora e desértica em redor desta larga baía de São Filipe, como lhe chamou Fernão de Magalhães. Uma terra dura, gelada, varrida por ventos muitas vezes ciclónicos, onde quase nada cresce e só com muita persistência o homem conseguiu finalmente instalar-se.

A rota para Sul da Armada das Molucas, ao longo da costa da atual Argentina, não foi propriamente um passeio. Assolado por tempestades, o capitão-general português ao serviço de Carlos I de Espanha refugia-se numa baía a que chama São Julião, aí permanecendo cinco atribulados meses à espera de tempo mais favorável, vencendo um motim, torturando e esquartejando culpados pelo meio. Mas foi também em São Julião que Magalhães e os seus homens viram pela primeira vez os habitantes da região, os índios tehuelche, que inspiraram o navegador a dar o nome à região. Altos, nus, cobertos com peles de guanaco (parente do lama, animal comum na América do Sul) e grossas proteções que usavam nos pés. Aos olhos dos homens europeus pareciam gigantes com pés grandes, e foi Magalhães que lhes deu o nome – Pathagoni, índios dos pés grandes, talvez do espanhol patacones, cães com patas grandes, explicam os historiadores.

Atrasada mais de meio ano, já perdida a pequena nau Santiago num naufrágio por alturas do rio Santa Cruz, o português não desiste de procurar a «cauda do dragão», nome de uma provável passagem do Atlântico rumo às tão cobiçadas ilhas das Especiarias do Oriente, que figurava em alguns mapas secretos da época. A 18 de outubro de 1520, com a chegada da primavera austral, a Trinidad, a Victoria, a Concepción e a San António largam da foz do rio Santa Cruz. Três dias mais tarde avistam um cabo, depois um grande areal com restos e ossos de baleias a denunciar talvez uma rota de migração, a água a fervilhar no encontro de correntes. Tinha de ser ali o estreito, a passagem para o outro oceano.

O cabo ficou conhecido até hoje pelo nome que Magalhães lhe deu. Cabo das Virgens, em honra daquele dia em que se celebrava Santa Úrsula e o martírio das onze mil virgens (que na verdade eram apenas onze, mas isso é outra história).

Ao estreito, tendo entrado nele a 1 de novembro, o navegador chamou-lhe de Todos-os-Santos, nome que rapidamente perderia a favor do apelido do português. A armada de descobrimento espanhola levou 28 dias a atravessar o estreito, enfrentando ondas gigantes e os ventos que descem em turbilhão das alturas dos Andes varrendo tudo à frente. Os homens punham os pés em terra apenas para caçar lobos-marinhos, enriquecer a dieta com crustáceos e subir aos pontos mais elevados à procura do rumo certo para sair do estreito. Ao décimo segundo dia, por alturas do cabo de São Valentim, na costa norte da ilha que hoje dá pelo nome de Dawson, rezam as crónicas que Fernão de Magalhães chorou de alegria quando os marinheiros lhe disseram ter avistado uma saída para o mar. Até dar nome ao cabo Desejado, no entanto, ainda havia de perder a San António, que regressou amotinada a Espanha. Magalhães sofreu os martírios do estreito que muitos viriam a sofrer depois dele, alguns perdendo vidas e navios para sempre no labirinto de ilhas, glaciares, fiordes, densas florestas e canais gelados. Em terra, no entanto, a vida dos primeiros colonos também não seria mais fácil.

Até Punta Arenas
Seguindo na Ruta 9 para sul e deixando Punta Arenas para trás, vale a pena percorrer os 60 quilómetros até ao Forte Bulnes, na Ponta de Santa Ana da península de Brunswick, hoje uma réplica da primeira fortificação que o Chile independente ergueu para reclamar a possessão do «Estreito e das terras mais além» em 1843, estabelecendo o primeiro «povoado» na Patagónia com duas dezenas de colonos. O local era tão inóspito e inapropriado, no entanto, que cinco anos mais tarde o então governador mandou trasladar a povoação para uma «ponta arenosa» à beira do estreito, mais a norte, princípio da Punta Arenas de hoje.

Na verdade, entre a passagem de Fernão de Magalhães por estas paragens e a fundação de Forte Bulnes – mais de três séculos – houve apenas uma tentativa para colonizar o estreito. Trágica e, talvez, por isso, durante 320 anos, sem ouro, prata ou outra riqueza que se visse, a região tenha caído no esquecimento, mantendo-se exclusiva de quatro povos nómadas – os índios tehuelches, selknam, yaganes e alacalufes, mais tarde dizimados pelas doenças e pelos costumes menos brandos do homem branco

De regresso a Punta Arenas, é obrigatório virar ao quilómetro 55, rumo a Puerto del Hambre – e o nome já faz adivinhar o que se segue –, nas margens da Bahia Buena. Por coincidência, fixa exatamente a meio caminho entre a fronteira norte do Chile com o Peru e o Polo Sul. Foi aqui que, em março de 1584, o capitão espanhol Sarmiento de Gamboa desembarcou com 300 colonos para fundar a Cidade do Rei Dom Felipe. Foi uma tentativa de defender o estreito de incursões inglesas, como a de Francis Drake, que, chegado ao Pacífico, aproveitara para saquear as costas do Chile e do Peru. A colónia não durou muito. Três anos depois, quando o inglês Thomas Cavendish atravessou o estreito para dar, também ele, a volta ao mundo, já não sobrava vivalma na Cidade do Rei Dom Felipe. Foi o inglês quem lhe deu o nome novo – Puerto del Hambre – quando percebeu que a fome e a inanição tinham triunfado.

Em meados do século xix, Punta Arenas era uma minúscula povoação de fraca figura. Colónia penal habitada por militares e condenados ao degredo, era visitada por aventureiros, caçadores de baleias e de lobos-marinhos. Foi preciso esperar mais umas décadas pelo início do desenvolvimento, que começou a chegar nos anos de 1870. O estreito é então a rota preferida dos comandantes para mudar de oceano e Punta Arenas é o único bom porto no meio de demasiadas milhas sem abrigo. O tráfego marítimo aumenta e a jovem república alicia famílias de colonos com terras, casa e ferramentas. Chegam sobretudo da Europa, croatas, espanhóis, suíços, galeses, judeus da Rússia, ingleses à procura de uma vida melhor.

Até um português, José Nogueira, que deixará fortuna e o nome para sempre ligado ao estreito e à cidade (mas isso também é outra longa história). A criação de ovelhas e a descoberta de ouro na Terra do Fogo abrem novos horizontes à povoação e enriquecem os que aproveitam as oportunidades. Até 1914, ano de abertura do Canal do Panamá, Punta Arenas vive um meio século dourado. A povoação miserável de casebres de madeira e caminhos de lama transforma-se com ruas desenhadas em quadrícula, palácios de pedra e navios de todos os tamanhos que trazem o mundo ao estreito e partem carregados de lã para as fábricas da Europa.

Hoje, a cidade de 120 mil habitantes (e toda a região) vive do turismo, do petróleo e do gás extraídos em grandes plataformas que se veem ao largo, da madeira e da ganadaria. Mas a história desses anos de ouro de há cem anos continua visível a quase cada esquina. Punta Arenas é passagem obrigatória para os amantes da natureza que partem para o Norte, para admirar a natureza intocável nos fiordes e nos parques naturais como o de Torres del Paine, ou dos que partem para o Sul, em viagem turística ou científica até à Antártida. Vale bem ficar aqui alguns dias para a explorar. É boa ideia começar por subir até ao Mirador Cerro la Cruz para ver a cidade de cima, uma profusão de telhados às cores que se estendem até às aguas do estreito, avistando-se ainda, lá longe, a Terra do Fogo. O centro da cidade percorre-se bem a pé e, inevitavelmente, todos os caminhos vão dar à Praça de Armas, ou Muñoz Gameiro, a

principal. Bem no centro, entre ciprestes e bétulas e sobre um pedestal de pedra, lá está a estátua de Fernão de Magalhães em lugar de honra, inaugurada em 1920 para celebrar os 400 anos do descobrimento do estreito. Pelo sim pelo não, se quiser voltar a este Sul do mundo, diz a tradição que é preciso beijar o pé do índio tehuelche, aos pés do navegador.

Em volta, ergue-se a catedral, a sede do governo da região e alguns dos edifícios da época dourada da cidade, palácios e mansões que pertenceram aos homens de negócios pioneiros da região, entre eles o asturiano José Menéndez e o português José Nogueira. O Palácio Sara Braun, como é conhecida a casa da viúva do português, é hoje um dos hotéis mais emblemáticos da cidade – o Hotel José Nogueira – e vale pelo menos uma visita. Parte do edifício pertence ao Club de la Unión e é possível marcar uma visita guiada, sempre preferível, porque a história começa pelo facto de ter sido a primeira casa de pedra de Punta Arenas e mantém até hoje algumas salas e móveis originais. Ali bem perto fica o Museu Regional de Magallanes. Instalado num outro palácio de um outro homem proeminente da cidade (Maurício Braun, por sinal irmão de Sara e cunhado de Nogueira, o português), merece igualmente a visita. Restaurantes e cafés também não são difíceis de encontrar por aqui. O peixe e o marisco, sejam eles quais forem que chegam à mesa, são de comer e chorar por mais, as doses são generosas e a simpatia chilena faz o resto.

A curta distância (dez quilómetros da cidade) fica o Museu Nau Victoria. Privado, abriu portas há três anos com a missão de dar a conhecer a história dos navegadores que ajudaram

a descobrir, conhecer e desenvolver a região de Magallanes. Como o nome indica, o primeiro projeto de Juan Matassi (proprietário do museu) foi a construção da réplica de uma das naus da Armada das Molucas – a Victoria, a única que completou a circum-navegação do planeta com Juan Sebastián Elcano no comando e que regressou a Espanha com os 18 sobreviventes da expedição. À nau de Magalhães, Matassi juntou entretanto outras duas réplicas: o James Caird – o pequeno veleiro salva–vidas em que o explorador inglês Ernest Shackleton navegou 1500 quilómetros para pedir ajuda e salvar os homens da Expedição Transantártica Imperial (1914-1917) – e a goleta Ancud, o igualmente pequeno veleiro que, em 1843, levou a expedição chilena até ao Sul para reclamar a posse do estreito e erguer o Forte Bulnes.

Será muito difícil alguém perder o Norte em Punta Arenas. Até mesmo quando os ventos sopram com força ciclónica, para cima dos 130 quilómetros por hora. É nesses dias que o município prende largos metros de cabo ao longo das ruas principais da cidade. A medida é simples e parece que funciona. Quem andar na rua não corre o risco de ser varrido, literalmente, para debaixo de algum carro e sempre é uma ajuda para o transeunte desavisado chegar ao destino. Que pode bem ser o transporte para o estreito e para mais uma memória de Magalhães. A tarde cai sobre as águas agora calmas. O Sol desapareceu para lá das montanhas e aconchegam-se os casacos. Ao longe, brilham minúsculas luzes numa das plataformas de exploração de gás. É tempo de regressar. Talvez ainda consiga ir a tempo de plantar o tal beijo no pé do índio.

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