E volto a aterrar num aeroporto, talvez já tenha estado aqui. De novo, o carrinho das malas, agora com ligeiras alterações, a pega tem uma textura diferente, os anúncios são escritos com outras letras. Quando as portas de vidro se abrirem à minha frente, passarei os olhos por uma sucessão de folhas de papel com nomes de pessoas e, como num filme, encontrarei o meu nome numa dessas folhas. Se estiver mal escrito, não ficarei surpreendido. Então, surgirá um rosto. Antes, costumava passar algum tempo a imaginar esses rostos e, quando chegava, poderia surpreender-me com os pormenores que divergiam dessa previsão como a cor do cabelo ou a facilidade discursiva. Hoje, sigo pelo caminho que me apontam.
Na viagem entre o aeroporto e o hotel, podemos conversar ou não. Sou acompanhado talvez por um homem, talvez por uma mulher, tem qualquer idade possível, tem qualquer nome e qualquer história possível. O mundo é diverso, feito de muitos cenários e máscaras sobrepostas. Cada uma dessas camadas apresenta idêntica diversidade, pois cada uma delas determina um mundo próprio e único.
Na viagem entre o aeroporto e o hotel, podemos conversar ou não. Sou acompanhado talvez por um homem, talvez por uma mulher, tem qualquer idade possível, tem qualquer nome e qualquer história possível.
Depois, começam novos dias. Pedir no hotel para lavarem a roupa. As minhas camisas não terão o cheiro de quando estou em casa, na cozinha, e pouso a mão sobre um monte de roupa para passar. Terão um perfume que, sem justificação, me trará a memória de imagens distante e desconexas: o tanque de águas verdes onde nadava com os meus amigos durante os verões, ou as garrafas que ficavam esquecidas nos cantos da despensa na casa da minha mãe, ou a frescura das pedras grandes no campo, levantadas da terra, humedecidas pelo interior da terra.
Contarei histórias que já contei muitas vezes, repetirei a escolha de certas palavras e, em algum momento, chegará o ponto exato em que esse tempo se cola com aquele que chegará, inevitavelmente: um grupo maior ou menor de pessoas a despedirem-se no aeroporto. E, logo a seguir a esse momento, as noites hão de suceder-se a dias, as estações serão trocadas por fusos horários como brindes especiais em concursos de televisão. Não sei como serão os rostos dessas pessoas de quem me despedirei no aeroporto. Da mesma maneira, não sei como será o meu próprio rosto, porque entre mim e a vida há sempre a própria vida. Porque há muitas escalas no voo para amanhã, para depois de amanhã, para a próxima semana ou para o próximo mês. Porque sou capaz de imaginar muito mas só em momentos raros consigo acertar no que acontece realmente.
Assim, trocaremos endereços de e-mail, que escreveremos em quadrados de papel. E seremos capazes de acreditar que vamos mesmo utilizá-los. Acreditamos que, tarde ou cedo, estaremos em casa e, então, em longas tardes imaginadas ou em longos serões imaginados, teremos tempo de sobra para dar seguimento a todo o potencial que nasceu nos lugares onde andámos. Essa crença ajuda-nos a encontrar o lugar no avião e a fechar os olhos, mesmo que não cheguemos a adormecer durante o voo. Mas, repetidamente, quando chegarmos, quando chegarmos, quando chegarmos, seremos outras pessoas, seremos outras pessoas, seremos outras pessoas.
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Crónica publicada originalmente na edição de setembro de 2019 da revista Volta ao Mundo, número 299.
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