Foi um marinheiro português que idealizou, organizou e morreu a realizar a primeira viagem de circum-navegação do planeta. Fê-lo com os conhecimentos científicos dos navegadores portugueses, mas em nome de Espanha, porque Portugal o rejeitou. Aqui recordamos essa primeira viagem que inspirou o nome desta revista.

No final do século XV, a vinda ao mundo de um rebento de uma família da pequena nobreza não era acontecimento digno de registo. É por isso que, apesar de fidalgo, ainda hoje os historiadores discutem onde (em Ponte da Barca ou noutra localidade do Minho?, em Sabrosa, Trás-os-Montes?, no Porto?, em Gaia?) e quando (por volta de 1480, mais ano menos ano) nasceu Fernão de Magalhães. Certo é que está documentada a sua entrada na corte, com cerca de 12 anos, como pajem da rainha D. Leonor, mulher de D. João II.

O rei D. Manuel I promoveu-o a escudeiro e, em 1505, partiu para a Índia na armada que levou o primeiro vice-rei, D. Francisco de Almeida. Em 1509, Magalhães combateu na batalha naval que proporcionou a maior vitória portuguesa no oceano Índico, a batalha dos Rumes. Ao largo de Diu, a esquadra de Francisco de Almeida afundou uma frota muçulmana muito superior, destruindo mais de cem navios dos mamelucos do Egito, dos turcos otomanos e de vários soberanos da Índia, apoiados por Veneza e Ragusa (atual Dubrovnik, Croácia) – repúblicas marítimas cristãs prejudicadas por Portugal no comércio das especiarias.

Fernão de Magalhães

Ainda nesse ano, Fernão de Magalhães acompanhou Diogo Lopes de Sequeira na expedição falhada a Malaca. No regresso sobreviveu a um naufrágio. Nessa viagem atribulada fez um amigo: Francisco Serrão, que lhe falou pela primeira vez das «ilhas das especiarias». Terão navegado juntos até Ternate, no arquipélago das Molucas, onde Magalhães viu carregar cravo e noz-moscada para um navio. Fernão de Magalhães nunca mais foi o mesmo.

O sonho de ir aos lugares onde cresciam as especiarias vendidas na Europa a peso de ouro começou a dominá-lo – até se tornar uma obsessão. Nos anos seguintes continuou a corresponder-se com Serrão, que se tornou feitor nas Molucas, onde acabou por morrer. Nas suas cartas, Francisco Serrão deu a Magalhães informações preciosas sobre o arquipélago e a sua localização.

Depois de ter participado na conquista de Goa, em 1510, e de Malaca, em 1511, às ordens de Afonso de Albuquerque, Magalhães regressou a Portugal em 1513. Ainda nesse ano, tomou parte na expedição a Azamor (Marrocos), sob o comando de D. Jaime, duque de Bragança, sendo nomeado «quadrilheiro-mor». Uma das incumbências do cargo era a repartição do produto dos saques – uma maneira de se pôr a jeito para invejas e intrigas.

Intrigas palacianas
De volta a Lisboa, quando foi pedir ao rei recompensa pelos serviços prestados, Magalhães percebeu que D. Manuel I dera ouvidos a quem lhe apontava o dedo por ter abusado do cargo. Defendeu-se e as acusações ficaram por provar, mas era impossível voltar às boas graças do rei: além de não lhe satisfazer o pedido, D. Manuel recusou-se a dar-lhe a mão a beijar.

Perante a afronta, Magalhães abandonou a corte e fechou-se em casa, a estudar tudo o que dissesse respeito à localização das Molucas – e à maneira de lá chegar. Tornou-se inseparável dos irmãos Rui e Francisco Faleiro. O cosmógrafo, astrónomo e astrólogo Rui Faleiro tinha sido um dos principais conselheiros científicos de D. João II e de D. Manuel, mas agora também tinha razões de queixa do rei.

A experiência de Magalhães e os conhecimentos de Faleiro sobre o estado da arte da cosmografia e da ciência náutica permitiram-lhes corrigir os cálculos de Cristóvão Colombo e concluir que era possível atingir as ilhas das especiarias navegando para ocidente. Mais: Rui Faleiro aperfeiçoara a determinação da longitude de modo a poder garantir que havia, a sul do Brasil, uma passagem do Mar Oceano (como chamavam ao Atlântico) para o Mar do Sul (o seu sócio haveria de dar-lhe o nome de Pacífico), permitindo atingir as Molucas navegando sempre no hemisfério atribuído à Espanha pelo Tratado de Tordesilhas.

A importância da viagem
Em outubro de 1517, depois de se ter «desnaturado», isto é, renunciado à nacionalidade portuguesa, Fernão de Magalhães chegou a Sevilha com um objetivo. Queria apresentar ao jovem rei Carlos I de Castela (futuro imperador Carlos V do Sacro Império Romano-Germânico) uma proposta capaz de transformar a Espanha numa potência mundial.

E, ao mesmo tempo, salvar-lhe a face do monumental flop que fora a descoberta da América por Colombo, convencido, pelos seus erros de cálculo, de que chegara à Índia. A viagem de Vasco da Gama à verdadeira Índia desacreditou Colombo e colocou sob o domínio espanhol um território então pouco mais do que inútil: as Caraíbas, onde não havia ouro nem especiarias.

O ambicioso projeto de Magalhães tinha pernas para andar, mas precisava de apoio. Começou por consegui-lo junto do português Diogo Barbosa, alcaide dos Reais Alcazares de Sevilha. Este deu-lhe a filha, Beatriz, em casamento e apadrinhou a sua entrada nos meios políticos, económicos e financeiros espanhóis. Trunfo decisivo foi a adesão ao projeto de Juan de Aranda, feitor da poderosa Casa da Contratação, gestora dos empreendimentos marítimos da coroa.

Com outro apoiante de peso – o bispo de Burgos, membro influente do Conselho das Índias –, no início de 1518, Magalhães, o sogro e os irmãos Faleiro viajaram até à capital espanhola, Valladolid. Ali convenceram o futuro Carlos V a aprovar o projeto, financiado pelos banqueiros Fugger e Cristóvão de Haro. Estes perceberam o alcance estratégico, em termos políticos e económicos, de garantir o domínio, na origem, da produção das especiarias. Precisamente aquilo que os portugueses pensavam ter conseguido ao chegar à Índia – para descobrirem que, afinal, se tinham assenhoreado, apenas, de um entreposto comercial.

A geopolítica de Carlos V
Em março de 1518 foi assinado o contrato entre Magalhães e a coroa espanhola. Esta comprometeu-se a aparelhar, armar e abastecer cinco navios e a pagar e alimentar 265 tripulantes, incluindo uma pequena fortuna na altura (50 mil maravedis) para o capitão-mor, Fernão de Magalhães.

Este, por seu lado, dispôs-se a levar a expedição a bom porto, isto é, às Molucas, conquistando para o rei de Espanha todas as terras descobertas, além de lhe entregar vinte por cento dos lucros da viagem. Na expetativa, claro está, de regressar com os porões das naus a abarrotar de cravo e noz-moscada.

Além de um empreendimento comercial capaz de render uma fortuna fabulosa, a importância da viagem de Fernão de Magalhães explica-se pelo contexto geopolítico. Neto materno dos Reis Católicos de Castela e Aragão (cujos tronos herdou devido à doença mental da mãe, Joana, a Louca), Carlos nasceu na atual Bélgica, então parte dos Países Baixos. O seu pai, Filipe, o Belo, foi herdeiro dos duques de Borgonha e dos Habsburgos da Áustria. Falando castelhano com dificuldade, o jovem rei estava envolvido num jogo diplomático e militar caro e perigoso. Portugal era um rival temível para a sua expansão marítima.

No continente europeu a parada era ainda mais alta e o prémio era a coroa imperial, ambicionada também por outros príncipes germânicos e pelo rei de França. Com apenas 19 anos, o rei Carlos I de Espanha teve de dar provas de grande capacidade de liderança e de manobra para se transformar no imperador Carlos V da Alemanha. Para ele, 1519 foi o ano de todos os perigos: da eleição imperial… e do início da viagem de Fernão de Magalhães.

Pouco antes da partida, houve ainda um contratempo: Magalhães rompeu a sociedade com os irmãos Faleiro. Rui enlouqueceu e Francisco regressou a Portugal, onde foi preso. A 20 de setembro de 1519, Fernão de Magalhães zarpou do porto de Sanlúcar de Barrameda, perto de Cádis, ao comando da nau Trinidad, seguido por outras quatro: San Antonio, Concepción, Victoria e Santiago. A primeira escala foi em Tenerife, nas Canárias.

É por estes motivos que tem (mesmo) de visitar as Canárias – veja as fotos
Canárias [Imagem: iStock/D.R]

Revoltas, fome e escorbuto
Navegando para sudoeste, chegaram ao Rio de Janeiro a 13 de dezembro. Juan de Cartagena, capitão da nau San Antonio, foi destituído e preso por se opor às decisões de Magalhães.

Punta del Este, Uruguai

A 11 de janeiro de 1520, os navios atingiram a atual Punta del Este, no Uruguai, e exploraram o rio da Prata, em águas que hoje pertencem à Argentina. A 31 de março, a expedição chegou ao porto de S. Julião, à entrada do estreito que veio a chamar-se de Magalhães, onde o comandante decidiu passar o inverno. A sua autoridade voltou a ser posta em causa, agora com violência.

Magalhães conseguiu dominar os amotinados, executando dois cabecilhas (incluindo Gaspar de Quezada, capitão da Concepción) e abandonando outros dois numa praia (um deles era o ex-capitão da San Antonio, Juan de Cartagena). Depois de a nau Santiago se ter afundado durante a exploração do estreito, em outubro, a tripulação da San Antonio amotinou-se, prendeu o capitão (o português Álvaro de Mesquita) e regressou a Espanha.

Ao fim de cinco meses de tempestades no labirinto da Terra do Fogo, na ponta sul da América, a 27 de novembro, Magalhães encontrou a saída do estreito a que chamou De Todos os Santos e entrou no oceano que batizou de Pacífico – devido à calmaria encontrada. Em 1525, na capitulación assinada entre a coroa espanhola e o navegador Sebastião Caboto para uma nova viagem de exploração, já aparece a designação «estreito de Magalhães».

Foi com a descoberta do estreito de Magalhães que se iniciou a globalização
[Imagem: iStock]
Com grande parte da tripulação dizimada pela fome, pela sede e pelo escorbuto, a 6 de março de 1521, os navegadores chegaram à ilha dos Ladrões, no arquipélago das Marianas. No dia 17 desse mês desembarcaram para se abastecer de água no arquipélago a que Magalhães deu o nome de São Lázaro. Estavam em Malhon e o nome foi mais tarde mudado para Filipinas, em homenagem ao filho e sucessor de Carlos V, Filipe II.

Morte na praia
Ancorados em Cebu, os europeus foram bem recebidos pelo rei local, Humabon, que se deixou batizar, juntamente com a sua corte. Como o rei da ilha vizinha de Mactan se recusasse a pagar o tributo imposto por Magalhães, partido três anos antes, em cinco navios.

Filipinas

Entre eles estava o italiano Antonio Pigafetta (c. 1480-c. 1534), autor do diário da viagem, Relazione del Primo Viaggio Intorno al Mondo, escrito em 1524 e publicado em Veneza, em 1536. O livro trata Magalhães como um herói, registando outro feito histórico, desta vez para a astronomia: a observação das nebulosas de Magalhães, que hoje se sabe serem duas galáxias anãs. Curiosamente, Pigafetta não refere Elcano uma única vez.

O fim da viagem iniciada por Fernão de Magalhães agudizou o litígio diplomático conhecido como a «questão das Molucas». Em causa estava a localização das ilhas e a determinação do hemisfério a que pertenciam, segundo a divisão do Tratado de Tordesilhas: a Portugal ou a Espanha?

Constituiu-se uma comissão mista de peritos dos dois países, a Junta de Badajoz-Elvas, para resolver o assunto, sem resultado. O conflito só ficou sanado quando D. João III comprou a Carlos V o direito às Molucas por uma elevada soma em dinheiro. Mas na verdade, como só mais tarde foi possível confirmar, as Molucas ficam mesmo no hemisfério atribuído a Portugal. Um pequeno erro de cálculo do grande navegador, que não diminui em nada o mérito do responsável pela primeira viagem de circum-navegação da Terra… a primeira volta ao mundo.

Percorra a galeria de imagens acima clicando sobre as setas.