A prosperidade económica trouxe-lhe dividendos e a sua capital, Taipé, é agora um destino muito provável para amantes de arquitetura, artes e, claro, boa comida.

Texto de João Miguel Simões | Fotografias de Jorge Simão


Reportagem publicada originalmente na revista Volta ao Mundo (nr. 252) de outubro de 2015

Da passagem dos portugueses pouco mais, ou praticamente nada, sobrou além da lembrança remota de um dia, muitos séculos atrás, terem aqui estabelecido um entreposto comercial, mas a lembrança de que um povo tão distante terá achado o seu território suficientemente atrativo para o batizar de Formosa cai bem até hoje à maioria dos habitantes de Taiwan.

De certo modo, nós, portugueses, também não sabemos muito mais sobre este arquipélago, desde muito cedo ocupado por camponeses chineses, e perdemo-lo de vista. E, já se sabe, longe da vista, longe do coração.

A história e o seu estatuto, há que reconhecer, são confusos, pelo que mesmo agora há quem não saiba como definir Taiwan – é um estado independente ou é uma província («a província rebelde») da China? Com o apoio militar (Taiwan é dos territórios que mais gastam dinheiro em armamento) e económico dos EUA (o seu PIB é invejável, sendo um dos tigres asiáticos), o arquipélago bate-se desde 1949 (data em que o líder Chiang Kai-shek, derrotado por Mao Tsé-tung, se refugiou na ilha juntamente com dois milhões de exilados e aqui formou um governo autónomo) para ser reconhecido como soberano, mas nem as Nações Unidas nem a maioria dos países (Portugal incluído) o aceitam como tal devido aos interesses chineses.

Também aqui, como em quase toda a Ásia, as motorizadas fazem parte da paisagem urbana.

A solução «Um país, dois sistemas» proposta pela China não agrada a Taiwan, que evita a todo o custo a reunificação, mesmo com o risco da sua integridade física (existe sempre uma tensão no ar). Vive-se um impasse, com a China, por um lado, a pressionar cada vez mais unilateralmente e Taiwan, por outro, a usar as relações económicas para tentar ganhar tempo e conseguir maior apoio da comunidade internacional.

Entender isto é importante para compreender Taipé, a sua capital, como um destino turístico. Porque parte da estratégia de Taiwan é no presente dar-se cada vez mais a conhecer. E que trunfos tem para o fazer, para lá do seu território montanhoso (muito procurado na região) e do facto de ser um dos maiores produtores mundiais de bicicletas topo de gama? A resposta vem já a seguir.


Várias décadas de costas voltadas criaram diferenças culturais bem profundas entre a China continental e o território de Taiwan, tanto que a simplificação (inclusive dos ideogramas usados para escrever em mandarim) adotada pela primeira não foi adotada pela segunda, onde se deu uma maior preservação de todas as antigas formas da arte chinesa. Isso faz de museus como o Palácio Nacional um verdadeiro tesouro, pelo seu espólio de artes decorativas, e uma visita incontornável para quem vem de fora – o que inclui os turistas e estudantes oriundos de outras partes da China.

A sua história impressiona, e é coisa para ocupar umas boas horas, mas arriscar-nos-íamos a dizer que o Museu do Teatro de Fantoches Lin Liu-Hsin, apesar de muito menor e modesto, causa maior comoção. Se perguntarmos a um taiwanês o que mais define a sua cultura, a resposta vai ser: os fantoches (tanto que existe um canal de televisão a eles dedicado que emite 24 horas por dia!). Este museu, com uma equipa internacional muito dedicada, reúne exemplares de toda a Ásia ligados à tradição chinesa, mas enfrenta agora a concorrência de colecionadores particulares que se perceberam do seu grande valor no mercado.

Os portugueses estabeleceram aqui um entreposto comercial. Rendidos às evidências, chamaram-lhe Formosa.

E dos fantoches passamos para a ópera chinesa. O elenco da Escola Nacional de Artes Performativas de Taiwan faz espetáculos com muita regularidade e permite-nos o contacto direto com uma forma ancestral de representação conhecida pelo seu grande grau de exigência. A aprendizagem é demorada e muito hierarquizada, mantendo-se a tradição de todos os papéis serem desempenhados por homens. Outro facto curioso é que muitas das pinturas e expressões faciais que vemos na ópera estão também presentes na imagética de templos como o de Confúcio, pelo que é interessante estabelecer esse paralelismo.

Por esta altura é natural que se instale uma dúvida (mais uma) em quem lê: mas então a cultura em Taipé vive só do passado? Nada disso. Muito pelo contrário. Desde 2000, Taipé vive um frenesim artístico digno de nota, já que o próprio governo tem vindo a apoiar a transformação de antigas fábricas e armazéns em espaços de arte contemporânea (como é o caso de Treasure Hill, um antigo campo de concentração que encontra nesta sua nova função uma espécie de redenção). Entre as galerias de arte mais renomadas estão nomes como Aki, 1839, Angel, Chi-Wen, Elsa ou Eslite, sem falar, claro, do Museu de Arte Contemporânea de Taipé (MOCA).

A ilha tem uma população a rondar os 23 milhões de habitantes. Desses, cerca de 7,5 milhões vivem na área metropolitana de Taipé, a capital.

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A comida de rua está fortemente enraizada nos costumes e na rotina diária da Ásia, pelo que Taiwan não é exceção. Em Taipé, apesar da grande prosperidade das últimas décadas que trouxe outro tipo de alternativas, mercados noturnos como os de Shilin e de Roehe St. continuam a ser muito concorridos. Entre o comércio de bricabraque e as bancas de jogo – outra prática bastante arreigada –, os cozinhados de forte odor, nem sempre identificados à primeira por quem vem de fora, levam a melhor. É uma experiência de comunhão local, mas não é para todos os estômagos.

Importante mesmo é o amor dos locais à gastronomia, pelo que a ida a um restaurante, seja de que tipo for, se converte rapidamente num festim difícil de acompanhar mesmo por quem se tem na conta de um bom garfo. A par de pratos mais populares como a galinha bêbada, os dumplings (delicados raviolis de massa muito fina cozidos ao vapor e com diferentes recheios) são relativamente fáceis de encontrar, mas a variedade mais apreciada é a dos xiaolongbao do Din Tai Fung. Trata-se de uma cadeia de restaurantes criada por um chinês, o senhor Yang Bingyi, radicado no arquipélago desde 1948 e que teve a visão de a tornar um império à escala mundial (só em Taipé existem várias unidades, mas a de Hong Kong tem uma estrela Michelin). Para se ter uma ideia do processo, equipas de seis elementos ocupam-se da confeção artesanal dos dumplings, tendo cada um uma função especifíca na cadeia de produção e uma equipa só se ocupa de uma variedade (são 12 no total, inclusive de sobremesa). Aparecer no Din Tai Fung sem mesa marcada é correr o sério risco de não se ter vez – se assim for, pode sempre levar consigo, à laia de consolo, outra especialidade da casa, o bolo de ananás.

Joel Robuchon, Gordon Chen, Tenku Ryugin e André Chiang são chefes-estrela com poiso em Taiwan.

Diferente mas igualmente muito procurado, o Addiction Aquatic Development, um complexo gourmet importado do Japão, chegou, viu e venceu. É um dois em um, com mercado de peixe e área de restauração. Numa época em que se tornou quase corrente encontrar este tipo de propostas, o Addiction impressiona pela sua fartura e oferta. E não sendo barato, vale o que custa.

Chegados aqui, torna-se fácil prever que Taipé é terreno fértil para o fine dining — a fome juntou-se à vontade de comer. Nos últimos anos, sem grandes alaridos, a cidade acolheu nomes grandes da alta gastronomia mundial como o francês Joël Robuchon (que abriu uma filial do seu Atelier), o chinês Gordon Chen (do sofisticado Loin, de inspiração francesa), o japonês Tenku RyuGin (três estrelas Michelin em Tóquio com filial em Hong Kong e agora aqui) ou o taiwanês André Chiang, que se tornou famoso em Singapura e regressa com o Raw, um bistrot de nova geração que o jornal The New York Times já incluiu numa lista de 10 restaurantes que, por si sós, valem a viagem.

Entretanto, o jovem chef Richie Lln, de Hong Kong, com passagem pelo premiado Noma (classificado como o melhor do mundo pela revista britânica The Restaurant em anos anteriores), tomou coragem e abriu o MUME, cozinha nórdica contemporânea mas com recurso a ingredientes locais. E a procissão vai no adro.


À semelhança de outras metrópoles asiáticas, movidas pelo crescimento económico, também Taipé sofreu profundas mutações no seu tecido urbano. Na nova geografia da boa vida figuram agora bairros como Daan, que concentra grande oferta de restaurantes, lojas e até o maior parque da cidade; Datong, que preserva resquícios arquitetónicos da colónia japonesa e é conhecido pelo mercado noturno de comida Ningxia; Xinyi, que cresce em altura à medida que floresce como centro financeiro; ou Songshan, cada vez mais cosmopolita e cotada. A prova disso é que na sua antiga fábrica de tabaco emergiu o complexo New Horizon, que inclui um parque cultural, um hotel, uma galeria de arte (já aqui mencionada) e um centro comercial conceptual. Por fora, o edifício lembra uma caixa com vários compartimentos coloridos.

Não chega, porém, a ser tão icónico como a Taipei 101, uma torre com 508 metros de altura que se vê à distância, por mais que os arranha-céus estejam a irromper como cogumelos. Com centro comercial e escritórios, a 101 possui igualmente uma área de observação, toda envidraçada, a cerca de 400 metros, muito procurada para se ter a cidade aos nossos pés.

É uma Taipé que se agiganta e que, como tantos outros tigres asiáticos, vive agora o dilema de descobrir quem é entre aquilo que foi e aquilo que quer ser. Por mais que o caminho não seja óbvio, uma coisa fica clara desde praticamente a primeira hora: a cidade, a ilha e todo o arquipélago possuem um potencial turístico subestimado.

E a relativa surpresa dá lugar a uma certeza: a de a querer incluir no nosso mapa e de a seguir, mesmo à distância, com um pouco mais de atenção do que aquela que os nossos antepassados lhe dispensaram. Estará menos Formosa, mas segue segura.