É uma das vozes da Smooth FM e da M80, é autor publicado e assume-se como um camaleão em viagem. Gonçalo Câmara, 30 anos, mente aberta e sem preconceitos, é nosso passageiro na entrevista deste mês. Para ler em tempo de contenção.

Entrevista: Redação VM
Fotos: Orlando Almeida/Global Imagens

Há quem se leve demasiado a sério nas viagens?
G.C. Tenho a sensação de que as pessoas vão à procura de abrir a mente – é sempre esse o principal objetivo quando se quer viajar a sério, porque há duas coisas muito diferentes: viajar e ir de férias – e sinto que as pessoas têm uma mente um bocado fechada quando vão a certo tipo de países. Conheço mais a Ásia do que a América do Sul e sinto que a malta vai fazer Sudeste Asiático com a cabeça muito fechada.

Vão com ideias feitas?
G.C. Estão pré-formatadas, eu sou um ocidental e comportar-me-ei como um ocidental num país oriental. Lembro-me de ter feito a Ásia Central e havia um risco muito desconhecido. Fiz três países da Rota da Seda e era coisa muito pouco explorada turisticamente. Fui com um grupo de amigos e pedimos dicas para estes países, de segurança, alguma coisa. A resposta foi: ter consciência. Ter consciência de que não estás no teu país, não podes comportar-te como um ocidental no Turquemenistão, porque é um dos países mais fechados do mundo.

Certo, mas na Tailândia ou no Camboja a maioria dos estrangeiros dão-se com estrangeiros, vão a bares onde estão ocidentais…
G.C. Isso é uma coisa que faço por me desviar. Recentemente estive na Birmânia quase um mês e dá-me um gozo enorme poder experimentar a vida e o dia-a-dia daquela gente. Vejo um casal de ocidentais a sair de um restaurante italiano, no meio do sul da Birmânia e, das duas uma: ou têm uma sorte do caraças, a comida assentou-lhes bem e gostam, ou saem daqui com um desarranjo intestinal. Um italiano, completamente vazio, para dois ocidentais. Acho que as pessoas podiam arriscar mais nesse sentido, porque a experiência é muito mais rica.

Arriscas muito?
G.C. Arrisco bastante e sempre tive sorte, também há que dizer, mas gosto de arriscar porque sais de lá com uma experiência humana diferente. Vais viajar e vais com a cabeça em «eu quero ir para os sítios onde esta malta janta». Na rua, o street food é praticamente garantido. Se há um tipo a grelhar o dia todo, está garantido que 90% é comida feita no momento. Entras num restaurante vazio, meio para turistas, está um casal sentado ao longe, a cozinha mal funciona… o risco é muito maior. Mas isto é para os restaurantes como para a maneira de te deslocares. Em vez de contratar um tipo para nos levar, é escolher o autocarro. A experiência é mais barata, mas é mais rica, vais sentado no sítio onde aquela gente vai trabalhar.

«Gosto de viajar para escrever e depois fazer rádio para contar.»

Para isso é necessário que alguém já seja descontraído, não seja preconceituoso em relação a transportes públicos.
G.C. Se já és preconceituoso – e se és muito fechado no teu modo de estar, no teu modo de olhar as coisas no teu dia-a-dia, no teu país –, dificilmente vais para uma viagem completamente aberto. A não ser que a pessoa se transforme…

As pessoas transformam-se em viagem. Já houve viagens com amigos que deixaram de o ser depois dessa viagem?
G.C. Que deixaram de ser meus amigos não, mas há muita fricção. Já viajei com amigos e sozinho, são experiências completamente diferentes. Com amigos, tens a dinâmica da quantidade. Se fores com quatro, às vezes podes fazer pares de competição. Se fores com três, tens de te juntar ao que acha que tu tens razão. Se forem dois, também pode ser complicado.

Três é um bom número?
G.C. Sim, acho que sim. Podes conseguir ali um ponto de equilíbrio. Gosto imenso de viajar sozinho por isso, pela liberdade.

Como foi a primeira viagem sozinho?
G.C. Em 2017 fui visitar a minha irmã a Buenos Aires, que estava lá a estudar. Depois acabei por fazer a Patagónia toda, sozinho. Ganhei-lhe o gosto e em 2019 fui para a Colômbia e neste ano a Birmânia, Myanmar, também sozinho. Se me perguntares, prefiro ir sozinho, se bem que tens sempre momentos. A Colômbia tem uma vida diferente. Se quiseres, em Cartagena ou em Santa Marta, é mais social, tens festa. Alguém vai puxar-te para dançar salsa no meio da rua, ao pé das Caraíbas. Em Myanmar é muito mais espiritual, de retiro. Se queres ir para festa, não vás para Myanmar, vai para a Tailândia, quando muito. Na Birmânia houve ali um ou dois momentos em que, com uma lata de cerveja a olhar, estava ali, mas pensava: «Agora faltava-me aqui alguém, mas também alguém ocidental, um amigo, uma namorada, ou um grupo de amigos ou a família, com quem pudesse partilhar isto.»

As viagens vêm de família?
G.C. Sou 50% açoriano – o meu pai é de São Miguel – e toda a vida me lembro de ir duas vezes por ano aos Açores (verão e Natal). Houve sempre um incentivo dos meus pais à curiosidade das coisas, «não fiquem por Lisboa, não fiquem apenas por São Miguel». No ano passado passei a conhecer 100% do arquipélago. Fui a Santa Maria, era a que faltava. Viagens pelas ilhas, viagens pela Europa – a minha mãe é historiadora e investigadora –, há muita Roma, Berlim, muita coisa que a minha mãe sempre gostou de incentivar. Comecei a viajar para fora da Europa e nestes registos mais backpacking, digamos assim, a partir de 2015. Um grande amigo tinha estado em Myanmar e desafiou-me para ir, com mais dois amigos, para o Sri Lanka. Desde aí…

«Se já és preconceituoso – e se és muito fechado no teu modo de olhar as coisas -, dificilmente vais para uma viagem completamente aberto.»

Há uma grande viagem todos os anos?
G.C. Sim, todos os anos consigo articular-me com a rádio para fazer um mês fora, praticamente. Ou outubro ou fevereiro/março, é uma altura relativamente tranquila para a rádio, em termos de gestão de férias, e são bons meses para os sítios onde tenho ido: América do Sul e Ásia. Sem dúvida, a mais inusitada e inóspita foi a Rota da Seda. Foi em 2016, uma viagem por três países com ida pelo Quirguistão e regresso do Turquemenistão. Há algum desconhecimento, as pessoas perguntam se não são países em guerra, algum preconceito com o nome, por estarem perto do Irão ou do Iraque, o medo do desconhecido. E foi extraordinário.

Há dois Gonçalos? Um urbano e gourmet em Portugal e um aventureiro e descontraído em viagem?
G.C. Há um Gonçalo que é versátil. Não gosto muito de estar sempre nos melhores restaurantes, não há vida para isso, mas gosto de ir de vez em quando. Também gosto de ir às boas tascas e tabernas tipicamente portuguesas. Sou um camaleão, mas quando viajo gosto de ir despojado. Nisso, se calhar há um Gonçalo diferente quando viaja, de coração aberto.

Como se gere rádio, poesia e viagens?
G.C. É uma boa sopa de noodles. Tudo combina. A minha vida pessoal e profissional estão ligadas, tem vantagens e desvantagens, mas tudo combina. O Miguel Sousa Tavares dizia que a mãe dele, a Sophia [de Mello Breyner Andresen], tinha uma frase: «Viajar é olhar.» Nesse sentido, encontrei um ponto de ligação entre a poesia e as viagens, o olhar. Muito mais do que ir de férias, eu vou viajar, olhar para outros sítios para depois contar. A rádio entra aqui porque é dessa forma que conto. Gosto de viajar para escrever e depois fazer rádio para contar. E ao mesmo tempo isso tudo combina. Tenho um livro de poemas em que todos eles foram escritos em viagem. Não quer dizer que sejam poemas sobre viagens, porque não são, mas são em viagem, com aquela disponibilidade mental, num comboio, numa montanha, no deserto e há uma consciência e uma abertura de espírito maior para poder escrever, e de inspiração.

És um viajante com folha Excel?
G.C. Nada. Repudio pessoas que, só por terem estado no aeroporto de Frankfurt, dizem que já foram à Alemanha – há gente assim, atenção. Gosto de olhar um mapa e fazer um pin, dizer que já estive aqui, mas é para mim, para gáudio próprio. Não é coisa que meta na minha sala, é só para mim.

Imagem de destaque: D.R.

Entrevista publicada na edição de abril de 2020 da revista Volta ao Mundo, número 306.

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