Não importam as 9 horas entre Lisboa e São Paulo ao lado de um menino de três ou quatro anos a gritar, não importam as 5 horas entre São Paulo e Paraty, mil curvas lentas atrás de camiões, “Deus é fiel” escrito nos para lamas. Após uma noite em Paraty, só o som dos passarinhos e do frigorífico do minibar, acordar é parecido com ressuscitar. Nas manhãs desta cidade, nada agride um escritor publicado: o sol está à temperatura certa, ouvem-se galos ao longe, o café da manhã está pronto.

A festa começa mais logo. Nas ruas, há homens a pintarem os últimos detalhes com pincéis pequenos. A cidade termina de se preparar. Os carrinhos de pipocas, de churros e de bolos chegam aos seus postos. Toda a gente tem esperança de vender alguma coisa à multidão que aí vem. Num dos carros de bolos está escrito “aqui só tem delícias”. Passo por um grupo de crianças pequenas, em fila, agarradas a uma corda. Reencontro-as na Praça da Matriz, entre livros pendurados dos ramos das árvores por fios invisíveis, entre personagens da Alice no País das Maravilhas ou do Sítio do Picapau Amarelo. O Gulliver ainda está a levar os retoques finais, já estendido no chão, rodeado de liliputianos de cartão. Para as crianças, a Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) já começou. Na tenda da Flipinha (versão infantil deste festival literário), ouve-se um coro de meninos a responder um sim arrastado. Aproximo-me, no palco, sete crianças vestidas de letra soletram a palavra “DESEJOS”.

Toda a gente tem esperança de vender alguma coisa à multidão que aí vem. Num dos carros de bolos está escrito “aqui só tem delícias”.

Ao início da tarde, numa pousada do centro, há o almoço de boas-vindas. A piscina no centro, as palmeiras a levantarem-se na direção do céu e os autores convidados na fila para encherem o prato. Amigos que conheci aqui, amigos que conheci noutros pontos do mundo, amigos futuros que acabo de conhecer, caipirinha de maracujá e caipirinha de frutos vermelhos. Experimento as duas, a de frutos vermelhos entope a palhinha.

Anoitece cedo. Com este bom tempo, esqueço-me de que é inverno. Saio pela cidade, acompanho as luzes foscas que se vão acendendo. Reparo em dois barcos no rio, um chama-se Amor Eterno I e o outro, mais pequeno, chama-se Sonho de Arte. Os dois estão disponíveis para aluguer.

Às 7 da tarde, começa a mesa de abertura. Luís Fernando Veríssimo, António Cícero e Silviano Santiago falam sobre Drummond. Irremediavelmente melancólico, volto às ruas da cidade. Por cinco reais, compro um pequeno livro de espiritualidade e receitas vegetarianas a um hare krishna que me pergunta se sou argentino. Cruzo-me também com um homem de cara pintada; declama poemas por um real, são escolhidos de um menu. Sento-me na margem do rio. Sem que seja possível distinguir as palavras, as vozes amplificadas que chegam da tenda dos autores têm um ritmo sereno. E ouve-se o público todo a aplaudir. Aqui, mais perto, há uma mistura de vozes que só é perturbada por uma gargalhada ocasional, mais alta e distante. A pouca distância de mim, está outro escritor, trabalha debaixo de um letreiro que diz: “escrevo o seu nome num grão de arroz”. As pessoas param e assistem ao seu trabalho com admiração.

Imagem de destaque: Direitos Reservados

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Crónica publicada originalmente na edição de outubro de 2020 da revista Volta ao Mundo, número 312.

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