A Praça Aristóteles era como uma taça cheia de manhã. O céu, imenso sobre o mar Egeu, entornava-se nas fachadas brancas da praça. A partir do interior desse céu, nasciam pombos, atravessavam o ar impregnado de sal e desciam até às pedras do chão, procuravam migalhas, contornavam pernas de gente que ia a algum lugar ou que, talvez, apenas aproveitasse o tamanho daquele anfiteatro diante do mar, aquela liberdade. Eram também assim as crianças que corriam, sozinhas ou em grupos revolteados, pedalavam em pequenas bicicletas, trepavam à estátua de Aristóteles e sentavam-se a seu lado, paradas a olhar para a mulher que vendia balões, que segurava uma mão-cheia de fios. Na voz destas crianças, o grego tinha um som ainda mais solene e elegante, o detalhe com que pronunciavam palavras de muitas sílabas nivelava os ângulos do idioma, concedia-lhe claridade límpida, refletida pelo mármore branco, manhã grega, primavera perfeita.
No centro desse mundo, eu avançava devagar, tinha muito tempo, atravessava a teia que as vozes das crianças teciam. A manhã era imensa, exatamente como o céu, cabia inteira na Praça Aristóteles, a luz lançava-se de todas as direções. Às vezes, olhando fixamente para certos pontos, a luz cegava.
A manhã era imensa, exatamente como o céu, cabia inteira na Praça Aristóteles, a luz lançava-se de todas as direções. Às vezes, olhando fixamente para certos pontos, a luz cegava.
Essa é a impressão que tenho agora, recordando Salónica sentado a esta mesa. Se levanto o rosto do ecrã onde aparecem escritas estas palavras, distraio-me na paisagem da janela aberta. A minha primeira tendência não é olhar para baixo, estrada de carros anónimos, prefiro olhar para o céu. Sem custo, talvez por instinto, puxado por uma força como a que levanta os balões da Praça Aristóteles e que, certas vezes, os rouba das mãos das crianças, empurrando-os com crueldade, até não serem mais do que um ponto, cada vez mais pequeno, cada vez mais pequeno, até desaparecerem.
Neste céu, vejo o outro céu, mas pergunto-me quanto falta agora ao realmente estava lá. Ou porque começou a ser distorcido pela memória assim que afastei o olhar ou, com mais probabilidade, porque não cheguei sequer a ver muito do que aquela praça era de facto, não fui capaz de distingui-lo da minha ignorância. Nesse caso, esta Salónica é única, esta Praça Aristóteles existe dentro de mim. Quando descrevo a vendedora de balões, cigana, cabelos cobertos por um lenço amarelo, casaco desnecessário de malha, vermelho, estou a descrever uma figura desfocada, transforma-se em imagens apenas quando é nomeada, ganha cor nas palavras, o lenço que trazia na cabeça era amarelo.
Levanto o rosto do ecrã, este céu, tomo consciência do presente, e penso no que poderá estar a acontecer em Salónica, na Praça Aristóteles, neste preciso momento: pessoas concretas a atravessarem-na em silêncio, atentas a ideias, incapazes de me imaginarem aqui a imaginá-las. E, por um instante, agora mesmo, avanço devagar no centro desse mundo, tenho muito tempo, tempo como o céu, como o mar Egeu, manhã e primavera, tempo como o infinito que se estende depois deste ponto final.
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Crónica publicada originalmente na edição de junho de 2019 da revista Volta ao Mundo, número 296.
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