Os sentidos existem em todos os momentos. Agora mesmo, em jeito de teste, podemos fazer a atenção desfilar pelos sentidos: reparar no cheiro do ar que nos rodeia, na temperatura e na textura do que está ao alcance da ponta dos dedos, no sabor da saliva dentro da boca, etc. É provável e comum, no entanto, que antes desta lembrança tivéssemos os sentidos adormecidos, estavam talvez à espera de um estímulo suficientemente forte que os despertasse. Costuma ser assim: uma imagem chama-nos a atenção, soa um estrondo lá longe, etc. E, mesmo nesses casos, enquanto colocamos a concentração na visão, o olfato também existe. Os sentidos existem em todos os momentos.

Ninguém me obrigou a escolher uma roupa especial. Fui eu que, ainda em casa, a centenas de quilómetros de distância, percebi que o devia fazer. Acomodei essas roupas na mala já a prever que iria usá-las naquele jantar. O trabalho de construir uma experiência memorável começa por ser nosso. A nossa presença é imprescindível.

Parece-me claro que, no restaurante Átrio, em Cáceres, todos os funcionários estão conscientes acerca da natureza profunda do seu trabalho. Cada indivíduo tem a sua função, é específica, pode ser apreciada por si só, mas faz parte de um todo, está milimetricamente integrada num mecanismo. Admirável é assistir à forma como o serviço está sincronizado, desde o último ponto da cozinha até ao espaço que temos à nossa frente, iluminado de uma forma que não é ao acaso. De facto, a sensação é de que nada é ao acaso: todos os detalhes foram considerados e nasceram de uma decisão.

Impresso de propósito para nós, o menu chega em português, personalizado. Composto por mais de vinte elementos, é como o índice de um livro. Depois de anunciado, chega o início: um crocante de tapioca com emulsão de salmão e leitão. Ou seja, um retângulo de massa extremamente fina, como duas folhas de papel unidas por uma linha de creme, esse retângulo apresentado ao alto numa base de metal, atravessado pela luz. A delicadeza desse alimento exige a ponta mais sensível dos dedos e, depois, quase sem peso, quando o levamos aos lábios, a sua subtileza obriga-nos a sentir a forma como se parte e a leveza do sabor. Não é possível comê-lo sem reparar nos sentidos. Com eles, também nós estamos presentes.

 

Toño Pérez, o chef do Átrio, passa algumas vezes pelas mesas ao longo do serão. O que tem para dizer-nos e a forma como o faz demonstra a sua consciência desta troca, do gesto de comunicação que partilhamos, e que também inclui Jose Polo, o mestre de sala. E assim se vão sucedendo os pratos, como capítulos de uma narrativa, com a passagem de uns para outros meticulosamente planeada, a sugerir uma evolução, um significado. Os ingredientes extremeños a proporem um eixo, uma estrutura, mas em relação com o mundo inteiro: a carne de porco, tanto o presunto, como a orelha, como a bochecha, mas também vieiras, caviar ou garam masala.

Para descrever todo o enredo desse menu, até aos doces, até à cereja que não é uma cereja, e que já é um clássico deste restaurante, seria necessária uma análise que tivesse em conta múltiplos critérios, múltiplos sentidos, sem contar com a escolha de vinhos, com as histórias e justificações apresentadas pelo sommelier.

No fim de tudo, quando nos preparamos para sair, toda a gente se quer despedir de nós. Essa simpatia leva-nos a acreditar que gostaram tanto de nos ter ali, como nós gostámos daquele tempo um pouco confuso de tão intenso. Bem vestidos, com os sentidos ainda despertos, não conseguimos ir logo para o quarto de hotel, precisamos digerir ideias.

Então, percebemos que estamos no centro da zona histórica de Cáceres, medieval, extraordinária, cenário perfeito.

O que é o tempo?

Essa foi a única vez que fui a Madrid em 2020. Não sei quando iremos esquecer a maneira como a cidade foi diferente durante este ano. Na Gran Via, no Retiro, na Plaza Mayor, em toda a parte, apenas madrileños e eu. Então, senti uma espécie de necessidade de despedir-me. Tive um vislumbre do que seria o fim da cidade ou, com mais facilidade ainda, o meu fim. Imbuído dessa melancolia esmagadora, e considerando as horas livres de que dispunha, decidi que precisava de ir a um dos grandes museus de Madrid, tal como na primeira vez que visitei a cidade, lembro-me ainda, ou quando a quis mostrar aos meus filhos.

A pandemia obrigou-me a comprar o bilhete na internet, com hora fixa de entrada. No dia seguinte, no horário definido, estava eu diante do Museu Thyssen-Bornemisza, numa fila de gente com máscara, um ou dois metros medidos a olho entre cada pessoa. E voltei às salas do museu com o inocente encanto da primeira vez e ao mesmo tempo, com a solene tragicidade da última vez. E, de facto, a verdade crua de que tudo é sempre primeiro e último em simultâneo: eu a olhar para telas tal como saíram das mãos de Van Gogh, Picasso, Renoir, Kandinsky, e essas mesmas telas a olharem para mim.

Leia aqui todas as crónicas de José Luís Peixoto na Volta ao Mundo.

 

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