O pai de Rui Daniel Silva disse-lhe, no já silencioso leito de morte, “goza a vida”. Rui demorou algum tempo a perceber.
Nascido no Luxemburgo, chegou a Portugal aos 16 anos depois de cumprido do conservatório e cresceu como a maioria, a viajar pela Europa, sem nunca ouvir o clique. Atingida a maioridade, atravessou o Atlântico para apanhar o primeiro choque cultural no México. Ainda assim, não ouviu o clique. Aquele hotel cheio de tudo, não…
Seguiu para a República Dominicana e nada e chegou a Cuba, onde, apesar dos pesares (das restrições impostas, entenda-se), descobriu que havia músicos como ele que tocavam para a rua. E furou as regras, saiu de noite para o meio do povo e, aí, entre ritmos cubanos, ouviu o clique.
Aos 43 anos, soma 147 países no passaporte e a paixão por essa forma muito peculiar de viajar com a casa enfiada na mochila. Em 2020, a pandemia roubou-lhe, literalmente, dois voos comprados, para a Bielorrússia e para os Açores. Para 2021, vai esperar, olhando de longe para algum dos sonhos que falta cumprir: o Afeganistão ou a Arábia Saudita.
É possível, há voos disponíveis, porque é isso e apenas isso que um mochileiro programa – a partida e, a contragosto, o regresso. Mas há, também toda esta incerteza que corre o mundo por ondas. Agora aqui, na Europa, daqui a nada ali, nas Américas, nos entretantos na Ásia. E o risco de acabar confinado num fim de mundo qualquer é gigantesco.
Ainda que Rui Daniel não visse com maus olhos essa parte, apenas de poder não embarcar para o sonho. Porque a vida dele são fins de mundo, desses que não estão nos guias, porquanto se lhes metem à frente ao sabor dos dias.
Ouvido o clique em Cuba, passou dois meses no Egito. Rui Daniel é professor de piano e tem a sorte de poder juntar aos dois meses de férias. Movido pela curiosidade, atravessou o Sinai e o Mar Vermelho, subiu por Israel e acabou na Jordânia. Noutros dois meses, ligou a Tailândia, o Camboja e o Vietname. “Despertou em mim tudo, porque era tudo completamente diferente, achava piada a tudo”, ao autocarro tailandês lotado com cadeiras de plástico a aproveitar o corredor, para dar apenas um exemplo dos muitos que já juntou num livro.
Até que chegou África, o espanto total. E o Irão, “a maior bofetada”, por ser o povo mais hospitaleiro com que esteve, ao contrário do que podem deixar pensar as notícias. “Aliás, fiquei chateado com as notícias”, porque o Mundo não é como elas contam.
O Iraque, o Paquistão, uma viagem de bicicleta do Senegal à Guiné-Bissau porque um dia cruzou um francês de bicicleta, “as pessoas que não têm nada são as que nos abrem a porta” numa noite de improviso, como a maioria das noites das viagens de Rui Daniel, como aquela em que o dono de um restaurante o deixou abrir a tenda para dormir ali mesmo.
Ou aquela em que um pescador lhe indicou um cargueiro para chegar aos Camarões. Ou ainda aquela em que um médico lhe cedeu um teclado para ensinar música às crianças numa missão sem eletricidade nos confins de Angola, onde a energia era do isqueiro do jipe do padre.
Rui Daniel diz: “É preciso uma abertura grande”. E é essa abertura que permite que se seja mochileiro nesta estranha época pandémica. A receita é sempre a mesma: encontrar uma viagem barata nos motores de busca dedicados, marcar a primeira noite no destino e, depois, seguir o instinto.
Enquanto, isso, viaja escrevendo o que já viajou. Com os olhos postos na mochila. Porque foi isso que lhe disse o pai.
(texto publicado originalmente na edição nº 314 da revista Volta ao Mundo)