Foto: Christophe Archambault/AFP

Guadalupe é uma borboleta. Ou é Karukera, o crioulo para ilha das Belas Águas. É o Caribe, mas é muito mais do que isso: é um verde luxuriante e desafiante que desagua num mar (na verdade, em dois) transparente e quente, e colorido por uma fauna sem par. É praia, sim, mas é sobretudo a vida que naquelas latitudes – e altitudes – se vive: uma vida leve e sorridente, “em modo ‘happy hour’”. Descobri-la é a proposta de Marcelo Andrade.

A paixão com que Marcelo descreve o território ultramarino francês que fica na exata fronteira do Atlântico com o mar do Caribe, descoberto em 1493 por Cristóvão Colombo, só tem par nas marcas que o lugar lhe deixou no coração.

Natural de Cinfães e sete anos imigrado na Suíça, decidiu, a dado passo do crescimento pessoal, trocar a neve dos Alpes pelo calor das Caraíbas, “mudar da parte fria do Planeta para a parte mais quentinha”. A borboleta foi o escape para onde os indicadores apontaram, os dele e os da companheira de vida. E seguiram-se meses intensos, ela fisioterapeuta rapidamente encaixada, ele calmamente a procurar até encontrar uma loja de sapatos. Simples como a vida lá, só interrompidos por um problema de saúde da companheira que forçou o regresso. Marcelo voltaria, sozinho, enlutado, para somar um total de oito meses num território pequeno mas imensamente rico.

“Esses oito meses acabaram por prender-me mais do que os sete anos que vivi na Suíça. As pessoas têm uma forma muito especial de viver o dia a dia, são muito próximas, gosta-se facilmente delas, é tudo de uma intensidade enorme. Oito meses foram como oito anos, por tudo. Mudámos de casa muitas vezes, conhecemos muita gente em sítios diferentes, muitos franceses da ‘metrópole’, como eles chamam a França. Tínhamos fome de conhecimento, aproveitávamos todos os feriados que tínhamos – e são muitos em Guadalupe… – para conhecer.”

É essa Guadalupe calcorreada palmo a palmo que Marcelo se propõe mostrar, enquanto líder de viagens na 100 Rota. Autor do blogue “Ir em Viagem” com a atual companheira, Vera, Marcelo quer conduzir curiosos através da vida simples de umas Caraíbas menos turísticas. “Guadalupe é um arquipélago com um potencial enorme, tem tudo, tem mar, duas ilhas principais, Grande-Terre e Basse-Terre, divididas por um rio de água salgada, tens que passar uma pontezinha que as liga para formar a famosa borboleta.”

A viagem começa precisamente por Basse-Terre, onde Marcelo viveu. Porque, ao contrário do nome, é a terra mais alta. É mesmo a mais alta das Pequenas Antilhas, com 1467 metros de altitude quando se assoma ao topo do vulcão La Soufrière, num trilho fácil, mas lento para se chegar a uma vista imperdível sobre Basse-Terre e Grande-Terre e as ilhas que completam o arquipélago, Les Saintes, Marie-Galante, Petite-Terre, La Désirade.

O vulcão, ativo e um dos mais vigiados do Mundo, é o ponto de referência do Parque Nacional de Guadalupe, lar de mais de 70 cascatas que parecem ter sido postas ali porque é preciso refrescar-se depois de subir e descer La Soufrière, com a garantia de que não há animais perigosos e que é por isso possível meter-se no trilho de madrugada para amanhecer com vista para um horizonte sem-fim, rodeados de mais de cem espécies de orquídeas, enfiados num mapa com mais de 300 quilómetros de trilhos marcados e um segredo bem guardado: as águas quentes dos Bains Jaunes, um autêntico spa ao ar livre.

Na base da montanha, a floresta tropical desce até ao mar e despede-se na praia de Malendure, aberta para a Réserve Cousteau, mil hectares de fundo marinho para explorar entre peixes de mil cores e corais, nadando debaixo das tartarugas, num paraíso para mergulhadores. Os ousados podem tentar o batismo de mergulho, os tranquilos podem optar por caiaque e descanso na areia com uma cerveja Caribe nas mãos. Com uma garantia: a temperatura da água não descerá dos 26 graus, a do ar cá fora jamais subirá para insuportáveis 40.

Foto: Marcelo Andrade

Uma das grandes belezas de um território rodeado de mar por todos os lados é a vista da ilha da frente. Aqui, está ao alcance de uma curta viagem de barco, 15 km sobre águas cristalinas para sul. Na verdade, são várias ilhas, Les Saintes, duas delas habitadas, Terre-de-Bas e Terre-de-Haut, palcos de uma Guadalupe rural e colorida, que importa fazer num meio de transporte verde que não atrapalhará o silêncio da Natureza enquanto se cruzam com tempo estradas tranquilas entre povoações feitas das cores do Caribe. Ali esconde-se o Forte de Napoleão, as praias de L’Anse de Crawen e de Pompierre e uma das baías mais bonitas do Mundo, La Baie des Saintes.

“A Guadalupe não é uma ilha para se ir descansar e estar o dia todo na praia”, avisa Marcelo, enquanto desfia os nomes de cascatas e de praias, de baías e de visões. Ou diz os nomes de outras ilhas, que as conhece a todas e bem, e parou na de Petite-Terre, (os nomes, ai a simplicidade dos nomes nas terras de vidas lentas e boas) a dos tubarões-limão que nadam ao largo, com as raias-leopardo, enquanto no minúsculo ponto do mapa se esticam, preguiçosas, as mais de 300 iguanas que escolheram aquele sítio como lar. Ou elenca as praias do norte, de areia branca e coqueiros, ou as do sul, de areia negra. Ou compara a capital em Grande-Terre, Pointe-à-Pitre, com a velha capital de Basse-Terre, centro histórico delicioso, ou aponta os mercados de odores e cores, de artesanato e mantimentos. Ou diz os nomes das estradas, a Traversée uma delas, não podia ser outra a apelidação, e de mais cascatas com designação de animais do mar. Ou do miradouro da Porte D’Enfer ou da Pointe des Chateaux, que não tem castelos mas rochedos sucessivos, modelados por milhares de anos de ação do mar. Ou conta como as pessoas são afáveis e divertidas, como fazes amizades, muitas amizades puras que te permitem sentar-se a uma mesa crioula, em casa de alguém, a provar a gastronomia e o rum que é bebida regional por excelência, numa ilha onde se trabalha “a um ritmo muito tranquilo, a segunda-feira começa tranquila, a sexta tranquila é, e a meio da semana a coisa lá vai andando, um papel demora uma eternidade, mas acabas por te habituar a um leve-leve tropical como o de São Tomé e Príncipe”.

Foto: Christophe Archambault/AFP

Um leve-leve que inclui a exuberância da loucura do Carnaval, que é a festa maior de Guadalupe cuja alegria de viver só se suspende quando algo vem pôr em causa todo este ritmo bem oleado. Aconteceu recentemente com manifestações mais ou menos violentas porque a França impôs um certificado digital para combater o avanço de pandemia de covid-19, a mesma França que toma conta destes territórios ultramarinos quentes como quem toma conta de um filho mimado, mantendo-o. Nada que ensombre umas Caraíbas diferentes, que não são só praias ou resorts, “muito longe disso, pegas no teu carro e percorres a terra, em segurança”.

De Cinfães para o Mundo

Marcelo Andrade é essencialmente um irrequieto. Dos anos passados na Suíça trouxe um currículo de experiência vasta na escola da vida: trabalhou numa cave de vinhos, num restaurante de altitude, como regulador de material de esqui numa loja de alugueres, num centro de ténis que também é campo de verão, numa pastelaria, na Suíça e em Portugal, numa sapataria em Guadalupe.

A descoberta do Mundo começou com pequenas viagens na Suíça, materializou-se com uma travessia de bicicleta de lá até Portugal, consolidou-se em Guadalupe e amadureceu desde então, estando exposta no blogue Ir em Viagem em que, com Vera, descreve paragens e deixa dicas para nelas sobreviver. Um pequeno problema de saúde adiou recentemente uma formação de turismo e atirou Marcelo para este mundo da liderança de viagens. A ilha de Guadalupe tinha de ser o primeiro destino, porque é aquele que o apaixona e melhor conhece.

Blogue: iremviagem.com
Instagram: @iremviagem

IR
O voo de Paris a Pointe-à-Pitre leva aproximadamente oito horas, a que se devem somar mais duas de Portugal até Paris. A Air France, a Air Caraibes e a Corsair voam para Guadalupe, sendo possível conseguir bilhetes a menos de 500 euros. A melhor altura para visitar é de novembro a maio, numa região que é frequentemente fustigada por furacões no verão, época em que a chuva é presença habitual.

VIAJAR COM MARCELO
O programa da 100 Rota custa 1280 euros para 11 dias (10 a 20 de março) e inclui dormidas em gîtes (guest houses ou turismo rural), pequeno-almoço, um jantar crioulo, atividades, transfers e transportes locais.

ORÇAMENTO
Guadalupe, como qualquer região insular, sobrevive muito de importações, o que torna a vida algo cara. Será de prever 20 a 60 euros por dia para refeições para duas pessoas.

PROVAR
Accras (bolinhos como os de bacalhau, mas que podem ser de camarão ou legumes), frango colombo (com mix de especiarias indianas), Bon bokit e agoulou (sanduíches em pão frito que se comem em rulotes), poulet boucané (frango marinado em cana-de-açúcar e depois cozido).

Foto: Marcelo Andrade

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