Foto: DR

No coração da Serra da Estrela, Manteigas é berço de glaciares, lagoas e paisagem verde a convidar a longas caminhadas. Para além da natureza quase em estado puro, é o local onde a manufatura da lã continua viva e aberta a quem quiser conhecer os seus segredos.

Reza a lenda que alimentava o imaginário dos pastores que já pouco se veem nas curvas da Serra da Estrela que a Lagoa da Paixão tinha um monstro. O nosso Loch Ness, visto nos tempos de solidão da transumância, na alucinação do isolamento nas alturas dos covões e das naves e dos cântaros e dos poios que povoam este território. Reza que ele se erguia pela espinha, que despontava da água enevoada daquela lagoa que por cá se diz “do Peixão”, para tudo haverá uma razão.

Até que uma expedição científica veio da clarividente Sociedade de Geografia Portuguesa, de Lisboa, estudar a Estrela em 1881 e alguém desafiou o médico Souza Martins, em 1883, a comprovar que aquilo, afinal, eram raízes de urzes maiores, flutuantes, e que a ciência vencia a crença. Estaria a água fria, Souza Martins hesitou. Neste vai não vai, acabou o cientista a comprovar o pastor. Para todo o sempre haverá olhos marinhos e um monstro na LAGOA DO PEIXÃO.

Lagoa da Paixão (Foto: DR)

É de Manteigas esta estória porque é de Manteigas que aqui tratamos, do coração da Serra da Estrela, do lugar que lhe dá aquele pulsar feito corrente de águas essenciais, berçário do Zêzere e do Mondego e lar de elfos e juízes e majores e pianos de cauda e, fala-se, de golpes palacianos. Já se disse que a imaginação do pastoreio é fértil. Se lhe juntarmos alguma apetitosa teoria de conspiração envolta em capas de burel e alimentada a sons de chocalhos no nevoeiro, temos o caldo perfeito para contos alucinantes. Como esse do Peixão. E, sobretudo, como este que se segue, a da Casa do Juiz, na indescritível Nave da Mestra (remetemos a explicação dos topónimos da Estrela para o glossário incluído nestas páginas…).

Pois que terá sido ali que se urdiu a queda da monarquia, entre um grupo de janotas circunspectos que veio de comboio d’além ali, dali acolá, d’acolá aqui, para baralhar as pistas, e que foi conduzido até à nave da Mestre por um dos criados do presidente da câmara de então. Diz que. A verdade é que a magia do lugar se presta a conjeturas, uma casa granítica enfiada sob blocos erráticos abandonados pelos milénios de forma a criar uma fenda gigantesca.

É Paulo Costa que nos inebria com estas lutas, autarca durante anos de uma das quatro freguesias de Manteigas, autor de livros sobre o território e hoje ao serviço do município. Conta ele que se lembra de naquela casa haver um piano de cauda e uma garrafeira com garrafas. Cheias. Hoje, há o vazio ventoso de um planalto altaneiro, pasto de contador de lendas que são o cenário perfeito para descobrir dos mais de 200 quilómetros de trilhos verdes de Manteigas, que Paulo ajudou a definir.

Corre-os ou caminha-os amiúde, a ver se estão de saúde. E leva na alma a memória do avô, que lhos mostrou quando foi tempo, cantando e contando ladainhas assim: “Aqui passa São João / Com umas cordinhas na mão / Se esta água tiver bichos / Não me fazem mal ao coração”. Consta que um desses bichos era Moby Dick, a baleia de Herman Melville, que à Estrela vinha descansar percorrendo mundos subterrâneos até à Lagoa Escura, porque é sabido que ela não tem fundo e liga direta ao mar…

Poço do Inferno (Foto: DR)

É ao volante que Paulo se deixa ir na imaginação, num roteiro condensado porque amanhã é dia de correr trilhos fora, enfiados no Estrela Grande Trail. Trazer mundo ao verão manteiguense é o que se propõe aqui, porque Manteigas vive muito para lá da neve e é bem mais verde do que branca. Virando à esquerda depois dos Amieiros Verdes e das suas fábricas de burel, passa-se os viveiros cujas trutas é possível provar em qualquer mesa manteiguense e entra-se pelo asfaltado mas estreito caminho florestal que conduz ao POÇO DO INFERNO e mais além.

Atrás de uma curva, entre as árvores, a vista prende-se numa espécie de presépio aninhado ao fundo do vale, abaixo da vila. É o testemunho da história de sucesso e do definhamento da indústria têxtil de Manteigas: a abandonada Fábrica de São Gabriel, que foi aldeia inteira, com casas para industriais e operários, com escola e posto de correios e uma capela própria, que deu e guarda o nome da unidade, aldeia que tinha, consta, o melhor lavadouro de lãs do país. Nascida da mente de Joaquim Pereira de Mattos Cunha, nos finais do séc. XIX, começou a morrer, lentamente, em 1974, desligando uma máquina atrás da outra até que o último interruptor desceu para sempre, em 2004. É arqueologia industrial no seu melhor expoente. Ali. A abraçar o Zêzere.

Regressando à estrada, apontamos ao Poço do Inferno, uma cascata de tamanho respeitável a estilhaçar-se numa lagoa de água translúcida. Os salpicos deste milagre recordam-nos que estamos nas alturas da Estrela e que aqui é o reino do frio, que aqui é o vale glaciário que de repente percorremos por uma estrada altaneira, espreitando sempre a outra, mais baixa, e o trilho, junto à água, numa paisagem pontuada por cortes que já poucos pastores abrigam, antes servem, muitas já, de segunda habitação de elites urbanas, protegidas naquela solidão silenciosa que faz nascer lendas.

Além das cortes, há as esparsas casas de guarda florestal, plantadas aquando da reflorestação de 1888, numa serra rapada pelo intenso pastoreio. Paulo conta o passado, esse longínquo em que a transumância de mil cabeças podia descer dali até ao Alentejo, mais de 300 quilómetros mapa abaixo, conta os pastores que pediam cigarros a ministros renegados e que hoje “contam-se pelos dedos” (temos sorte, cruzámos um deles. Duas vezes), conta os nomes das pedras, que aqui são daqui, poios e cântaros.

Paramos na Nave de Santo António, esse belíssimo planalto que no verão é da cor do cheiro que nos encanta mal chegamos à Estrela, amarelo, branco e rosa, com uma casa abrigo no meio e o Poio do Judeu a vigiar, de um lado, ou o Major que dá nome a uma vereda sobre a Lagoa do Covão do Ferro ou do Padre Alfredo, haja criatividade para dar nomes às coisas, do outro, antes da entrada do carreiro que pode pôr-nos na Torre, depois de passar a famosa santa esculpida no granito.

Vale Glaciário do Zêzere (Foto: DR)

Tudo aquilo que vemos daqui e não cabe num abraço (consta que o antigo presidente Jorge Sampaio, numa visita a Manteigas, pediu que parassem o carro num dos melhores pontos de vista do VALE GLACIÁRIO, apeou-se, subiu ao murete de proteção da estrada, virou costas ao vale, abriu as pernas e baixou-se até ter a cabeça entre elas. Só para ver um losango…) é o dito “berçário” do Zêzere e do Mondego, desses portentos que se puseram numa luta ancestral a ver qual chegava primeiro ao mar (venceu o Mondego, que o Zêzere matou-se no Tejo), largados dos cântaros que são cântaros porque deles jorra a água que é a vida da Serra.

O CÂNTARO MAGRO é este que vemos do mais belo dos covões, o d’Ametade, hoje parque de merendas privilegiado sob uma floresta densa à margem do rio, pista do trilho que traz quem ousa da vila até ao Covão Cimeiro (para baixo fica o da Albergaria) e dele até à Torre. Coisa para cinco horas para o experimentado Paulo.

Cântaro Magro (Foto: DR)

GLOSSÁRIO

Covão
Há 33 topónimos com nome de covão na Serra da Estrela, 30 com índices de glaciação. O covão é um lugar fechado no fundo da montanha, muitas vezes leito de lagoas.

Nave
É o oposto de covão, uma planície aberta.

Chão
Semelhante a nave

Poios
Blocos graníticos que parecem ter sido deixados por uma mão divina, alguns em equilíbrio periclitante. Muitos destes “blocos erráticos” são marcas do degelo de glaciares.

Cântaros
São picos ou topos de montanha de onde desce água abundante.

O rico burel dos pobres

As margens do Zêzere foram o habitat de onze fábricas têxteis, mormente dedicadas à lã e ao seu melhor produto, o denso burel. Ainda que careça de informação, o nome Manteigas poderá vir de mantecas, o plural do nome dado a pequenas mantas de lã. E era aquele um vale fértil nesta indústria por uma razão: aproveitava-se a energia hídrica do rio. Hoje, sobram duas unidades. E se uma, a ECOLÃ, manteve a laboração desde que foi criada, em 1925 (ainda que tenha transformado a fábrica original em hotel), a outra, BUREL FACTORY, nasceu da decoração de uma unidade hoteleira das Penhas Douradas com o mítico tecido. O sucesso foi tal que se transformou em ateliê e, depressa, em fábrica.

Ambas ocupam instalações do enorme e falecido conglomerado Sotave, a Sociedade Têxtil dos Amieiros Verdes. E porquê este renascimento? Porque, explica-nos Isabel Costa, empresária da Burel Factory, o burel é um material de futuro. Começa por não exigir que se abata animais ou árvores para se extrair a matéria prima, uma fibra natural que é tanta em Portugal que até se enterra por falta de capacidade de fiação. Depois, por ser biodegradável e reciclável. Por fim, porque é, até, um já homologado material de construção, perfeito para isolamento acústico e térmico.

Burel Factory (Foto: DR)

A Burel Factory aposta sobretudo na decoração e no design, enquanto a Ecolã vive da exportação de vestuário que a manteve a pairar sobre as crises que levaram as outras fábricas de Manteigas. Destino: países nórdicos, Alemanha e Japão. É possível conhecer todo o processo de fabrico do burel visitando estas fábricas. Perceber como chega a lã, tosquiada em maio/junho para aliviar as ovelhas (que têm de ser bordaleiras, as mesmas de cujo leite se faz o Queijo da Serra e que estão em risco de extinção) nos meses de calor, já lavada. Como é depois “aberta” numa Loba Abridora, para misturar cores e amaciar, e depois cardada para uniformizar cor e textura e separar a lã em mechas que serão fiadas antes de ir para o tear para serem transformadas em xergas.

Os olhos e os dedos minuciosos das esbicadeiras eliminam as imperfeições do tecido antes de este ser batido. Na Ecolã é possível ver um pisão, que era usado no leito do rio para aproveitar a força da corrente no batimento. O resultado é um tecido com menos 40% do volume, estanque e pesado, resistente à água e ao fogo, por ter a malha tão apertada que não deixa passar oxigénio. O isolamento era tal que era o tecido de eleição dos monges e dos pastores, ficando associado à pobreza. Hoje, tem montras de luxo no Porto e em Lisboa.

A aposta nos trilhos

Acolher um evento como o Estrela Grande Trail (EGT) insere-se na aposta do município na vertente dos desportos de Natureza, lazer e bem-estar para lá dos meses de neve. A ideia, explica-nos Sérgio Marcelo, vice-presidente da autarquia com o pelouro do Desporto, é diluir ao longo do ano a elevada procura registada no inverno. E, de passagem, potenciar o comércio local, rentabilizando as mais de 700 camas que o concelho tem para oferecer. E o trail é um dos filões, a par da caminhada e do BTT.

O chamariz são os mais de 200 quilómetros da rede de “TRILHOS VERDES” de Manteigas, cuja marcação e manutenção está garantida, até por acordos com associações. E a verdade é que até os manteiguenses começam a ser conquistados por tamanha verdura: eram muitos dos que, no fim de semana do EGT, se viam a pontuar a serra com equipamentos de treino coloridos… Armando Teixeira, um dos organizadores do evento e assumido apaixonado pela Estrela, regozija-se por “trazer pessoas para este lugar e incentivar o empreendedorismo”, deixando no ar a ideia de que Manteigas pode seguramente ser um excelente lugar para empresas dedicadas a atividades de Natureza.

Trail (Foto: DR)

A ideia, quer dos organizadores, quer da autarquia, é elevar o EGT a lugar de destaque no roteiro internacional das corridas de montanha. Até lá, prepara-se um evento inédito: um Extreme Triatlo, a realizar nos dias 23 e 24 de setembro, que vai pôr os atletas a nadar nas frias águas da lagoa do Vale do Rossim, aos 1500 metros de altitude, a pedalar por 104 quilómetros de estrada atrás dos lugares mais bonitos da serra e a correr uma meia maratona mista, com asfalto, estradão e zonas técnicas, numa importação do conceito de triatlo de média montanha popular no norte da Europa.

 

QUATRO LENDAS

O Senhor do Esquife

Um carpinteiro a quem encomendaram uma imagem de Cristo no esquife para a sexta-feira santa retratou-o tão bem que uma voz saiu dela elogiando a semelhança e garantindo ao alucinado homem um lugar no paraíso… daí a três dias. Morreu mesmo. E a escultura está na Igreja Matriz de Santa Maria.

O Ermitão de São Lourenço

Domingos Dias era filho de famílias abastadas de fora da Serra da Estrela. Abalado pelos horrores de uma guerra para que fora enviado, decidiu viver como eremita na Serra de São Lourenço, sobrevivendo das esmolas do povo, a quem dizia que fazer o bem era fazê-lo para si próprio. Certo dia, uma senhora agastada com o pedinte deu-lhe bolo envenenado. Pouco depois, um grupo de caçadores procurou abrigo da tempestade na ermida (a Capela de São Lourenço, edificada em 1612) e o eremita partilhou o pouco que tinha com eles. Um deles acabou a comer o bolo que o mataria. Era filho da ditosa dama.

A princesa Estrela e D. Diego

Conta-se que vivia um rei num castelo num planalto da Serra e que tinha uma filha, tão linda que lhe deu o nome Estrela. Perdida de amores por um cavaleiro do reino, desgostou-se de amores quando o garboso jovem foi mandado para a guerra entre cristãos e muçulmanos. Subiu a serra e chorou, clamando “Mon Diego! Mon Diego!” por tanto tempo que os pastores apelidaram de Mondego o rio que das suas lágrimas se formou.

Relva da Reboleira (Foto: DR)

Alfátema (vezes dois)

Fugindo dessa mesma guerra, o monarca mouro de Manteigas atrincheirou-se com a riqueza e a bela filha, Alfátema, num palácio que uma súbita iluminação lhes apontou. Foram guiados pela fada madrinhas da bela, para protegê-la até que os esquadrões muçulmanos a viessem salvar. Anos depois, uma mendiga cansada descansou sob o Cabeço de Alfátema (na Nacional 232, a caminho de Gouveia) a roer uma côdea velha. Olhando à volta, viu um chão de figos. Comeu os que pode e meteu os outros ao avental para os filhos. Ao chegar a casa, descobriu diamantes. Voltou ao cabeço para apanhar tudo o que pudesse e quase morreu de calor e sede quando descobriu que lá nada havia. A voz de Alfátema ouviu-se então. “Era teu tudo o que viste / Agora tornaste em vão / Não passes mais neste sítio / Na manhã de São João./ Não te perdeu a pobreza / Pode matar-te a ambição”.

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