Pode o turismo deitar para trás das costas o conceito de massas e ajudar pequenas comunidades locais, salvando-as de uma morte lenta sem lhes desrespeitar a identidade?
A resposta é sim, pode. Isso mesmo ficou comprovado na quarta edição da ABVP Travel Fest, que decorreu durante o último fim de semana no Teatro Jordão, em Guimarães.
Os testemunhos da generalidade dos convidados ajudaram a clarificar a ideia de que o turismo consegue contribuir para que pequenos lugares que pareciam condenados a uma morte lenta sejam devolvidos à vida com o contributo de visitantes. Isto sem que, necessariamente, tenham de desvirtuar as suas raízes, pelo contrário. Mantê-las e mostrá-las na sua plenitude é mesmo o grande desafio.
A brasileira Cris Marques é bom exemplo disso mesmo. Dedica-se a conhecer e dar a conhecer o Brasil profundo e ameaçado, tocando-lhe as entranhas e deixando que sejam protagonistas os habitantes de lugares remotos da Amazónia ou dos estados de Goiás, Tocantins e Maranhão.
Através do projeto Raízes do Mundo, esta turismóloga, como a própria se define, procura três pilares fundamentais nos seus ideais de viagem. “O protagonismo comunitário, a preservação e sustentabilidade e o incentivo à economia local”, explicou às quase três centenas de pessoas que fizeram a plateia dos dois dias da Travel Fest. Porque para ela, o “importante é respeitar as pessoas e onde moram”. Sem nunca desvirtuar tradições e identidades, contrariando o paradigma de uma “visão colonizadora do turista, que continua evidente e tem que ser quebrado”. Nem que para isso seja necessário, como já lhe aconteceu, fazer uma caminhada de quatro horas para alcançar o destino pretendido, isolado de tudo mas merecedor de uma história bem contada.
Histórias bem contadas são também protagonizadas por Bernardo Conde, português que através da fotografia eterniza todos os lugares que toca. Como a ilha de Madagáscar, onde, inclusive, angaria fundos para que crianças possam frequentar a escola. “Viajar é estreitar laços e poder ajudar”, define este aveirense, autor da página Trilhos da Terra.
Joan Torres, fotógrafo espanhol, é dinamizador da página Against the Compass, onde documenta o que vê e sente em destinos pouco convencionais, como o Haiti, a Síria, a Eritreia ou a Somália, muitas vezes inacessíveis a viajantes comuns. “Mergulhar no desconhecido é sempre um desafio. Mas vale sempre a pena quando se dá tudo pelo lugar em si”, considera.
Outro fotógrafo espanhol, Vicente Fraga, tem dedicado os últimos anos a documentar o que resta de aldeias da Galiza reduzidas a menos de uma mão cheia de habitantes. Recolhe-lhes os testemunhos, deixa-os para à vista de todos que os queiram conhecer, para que se saiba o que sente quem vê os vizinhos partirem e se acostuma à solidão. “Viajar é sempre regressar às origens”, define.
Viajar é, também, o verbo preferido da portuguesa Raquel Ochoa, autora de mais de uma dezena de livros, boa parte deles dedicados a deixar para a posteridade os seus relatos na estrada. “De que valem as histórias se ficarem guardadas no baú?”, questionou a escritora para uma plateia a quem deu a conhecer dicas e técnicas sobre narrativas de viagem.
Já Vítor da Silva aproveitou o Travel Fest para regressar a Guimarães, onde nasceu e cresceu, depois de uma longa temporada no lado indiano dos Himalaias, onde viveu com nómadas e foi um deles, experiência que documentou nas redes socais e noutras plataformas, após ter estado noutros pontos isolados do Mundo. Regressará à Índia desconhecida em breve com um pequeno grupo de visitantes, para que também sintam na primeira pessoa as especificidades de um contexto tão diferente do convencional.
Também na Índia, Shivya Nath desenvolveu vários projetos de turismo sustentável junto de pequenas comunidades. Como o Voices Of Rural India, onde são “descritos lugares e pessoas e os seus contextos”, ajudando ao desenvolvimento de aldeias e vilas recônditas sem “a massificação e desvirtuação muitas vezes associadas às redes sociais, que não respeitam os lugares e destroem espaços naturais”.
Outros viajantes com testemunhos únicos de percursos singulares foram protagonistas na ABVP Travel Fest. Como o videógrafo norte-americano Brandon Li, que transforma cada visita a um país em pequenos mas intensos filmes em que dá a saber o melhor que viu na primeira pessoa. O seu trabalho pode ser conhecido aqui.
Também Eva Zu Beck, polaca radicada no Reino Unido e ostentadora do título de “melhor youtuber feminina de viagens”, descreveu como é possível “conhecer locais fora dos circuitos habituais” sem os desvirtuar. Já viveu isolada no Iémen, percorreu montanhas da Albânia, explorou o Paquistão, calcorreou a Mongólia a cavalo. E muito mais. Porque o importante é “ajudar as pessoas a sentirem-se vivas viajando”.
Do Reino Unido veio ainda Phoebe Smith, qual viajante filantropa que, após alguns anos de experiências a sós, tem agora em iniciativas que ajudam camadas desprotegidas da sociedade, como os sem-abrigo, o seu foco principal. Igualmente escritora, Phoebe considera “que um pequeno gesto pode auxiliar muita gente”. E viajar é meio caminho andado para levar à prática tal ensinamento.
O ABVP Travel Fest, promovido pela Associação de Bloggers de Viagem Portugueses, tem regresso confirmado para 2025, também no Teatro Jordão, em Guimarães.