Brisbane

Havia a Austrália nos sonhos mais antigos. Tão longe que justificava fazer render a viagem com a Nova Zelândia e a Polinésia. Ora, dali não se regressa pelo mesmo caminho. Sofia Martins acabou por dar a volta ao Planeta em 40 dias. Um pormenor: Sofia anda numa cadeira de rodas…

“Foram 40 dias de aventura, uma volta ao Mundo”, no sentido literal do termo, uma circum-navegação, na verdade, “três continentes, diferentes países, várias cidades, muitos desafios, algumas surpresas, primeiras vezes, também desilusões, alguns riscos e muitas superações.”

Lido assim, o depoimento de Ana Sofia Martins é apenas o de uma viajante que decidiu circundar o globo. Só que não. Sofia foi parar a uma cadeira de rodas quando tinha 23 anos, ia ela em viagem, de carro, a caminho de França.

Perdeu a mobilidade, mas não a paixão pela viagem. Demorou a reavivá-la, teve de aprender uma coisa essencial: nunca desistir. E, este ano, depois de dezenas de destinos no currículo que construiu com o marido, Fernando, ousou ir longe. Às antípodas. Ora, se já ali estava, não iria voltar pelo mesmo caminho. Seguiu em frente e fechou o círculo rodeando a Terra e, oh suprema alegria, vivendo mais um dia do que os comuns mortais.

“Claro que uma volta ao Mundo em 40 dias tem desvantagens, é tudo um pouco a correr”, admite Sofia, que viu brotar a ideia depois de escolher o destino inicial: a Austrália, que queria conhecer há muito. “Ao lado está a Nova Zelândia e não podíamos deixar de ir. E mesmo ali está a Polinésia Francesa, aonde toda a gente quer ir, e depois de estar ali não íamos voltar para trás, pelo que fomos pelos Estados Unidos.”

O roteiro foi simples e com uma regra incontornável: não podia haver voos com mais de oito horas de duração. “É muito cansativo, o avião para mim é um pesadelo”, diz a engenheira informática de Setúbal, para quem uma simples ida à casa de banho durante o voo é uma estafa. “Prefiro parar, nem que seja apenas para sair do avião, ir à casa de banho e descansar antes do voo seguinte, como fizemos à ida, no Dubai.”

Azimutes apontados à Ásia, portanto. Do Dubai voou para Kuala Lumpur, na Malásia. Uma cidade como Sofia adora – é mesmo uma viajante urbana, admite-o sem problema, da mesma forma que admite odiar os domingos em viagem, porque não há gente nas ruas e é a gente que dá charme aos lugares –, com “o frenesim das pessoas nas ruas e do cheiro a comida por todo o lado. Dos sorrisos sempre na cara”.

Descobriu uma cidade de contrastes, “intringante”, com sorrisos e boa vontade mas algo complicada para pessoas com problemas de mobilidade, dada a inclinação do terreno e os passeios intermitentes. Valeu-lhe o metro, “moderno e acessível”, mais do que o famoso monorail da capital malaia. E ali pôs em prática uma das suas grandes lições de vida: gerir as expectativas e as frustrações.

Mal pensou em pousar em Kuala Lumpur apontou na wish list ir às Batu Caves. Porque “ir a Kuala Lumpur e não visitar as Batu Caves é quase como ir a Roma e não visitar o Coliseu”, diz ela que, por acaso, nunca foi a Roma…

Ora, quando se preparava para entrar na estação de comboio encontrou o elevador avariado. Prática, desistiu imediatamente da pequena viagem. “Afinal, sabia que não as podia visitar e, pensando bem, ia apenas ver uma escadaria enorme, num sítio que não é de todo acessível. Não fazia sentido! Às vezes deixamo-nos levar e influenciar por coisas que não são assim tão importantes para nós.” E nem sequer era inédito não poder visitar um local por falta de acessibilidade.

A etapa seguinte era a desejada Austrália. Surpreendeu-se com Sydney, moderna, bonita, organizada, muito acessível, viva, com gente simpática e prestável e inclinações valentes. Pena a assistência no aeroporto, com uma cadeira partida para ir até ao cinto das bagagens para poder sentar-se na dela, uma falha inesperada num país como a Austrália. “Para quem anda, isto é pior do que terem que sair do avião com uns sapatos que não são vossos, uns números abaixo, e ainda por cima terem de ir de braço dado com um funcionário. E, entretanto, não se lembrem de ir à casa de banho porque não vai dar jeito.”

A ideia de fazer uma road trip – que Sofia prefere aos aviões – até Brisbane acabou gorada pelo mau tempo, pelo que teve de voar mais um pouco para encontrar a terceira maior cidade do país. Começou por achá-la desinteressante, talvez porque o excesso de voos até ali a tenha desgastado. Mas, depois de uma viagem de carro até Gold Coast e Byron Bay, reencontrou-a glamorosa, descontraída, charmosa e perfeita para cadeiras de rodas, não fosse, mais uma vez, a inclinação, que é sobretudo aborrecida para Fernando…

Seguiu-se Queenstown, na ilha sul da Nova Zelândia, e a descoberta da cidade mais bonita da viagem, rodeada de picos e banhada pelo lago Wakatipu, majestoso visto do alto dos 480 metros do pico Bob, até onde subiu de teleférico para se calar de espanto.

De carro, a etapa seguinte, Christchurch, chegaria depois de uma das mais belas road trips da vida de Sofia, por paisagens verdes, repletas de cascatas, glaciares e pequenas vilas com tudo o que é preciso para pessoas com mobilidade reduzida, mesmo nos trilhos. E a cidade, reconstruída depois dos sismos de 2010 e 2011, não desiludiu: “Pacata, bonita e onde nos cruzamos facilmente com arte, plana e onde a acessibilidade é ponto de ordem”, ao contrário de Auckland, que não convenceu.

Mas, se a Natureza neozelandesa marca pontos, a falta de vida também. “É um país com poucas pessoas e, portanto, pouca vida. As cidades são despidas de gente”, sobretudo à noite.

Moorea

Chegar à Polinésia, foi, por isso, uma lufada de ar fresco. E uma surpresa: “se ficar no mesmo dia durante dois dias”. Descolaram da Nova Zelândia às 19.30 horas de 19 de abril e aterraram em Tahiti às 2.35 horas do mesmo dia, “um verdadeiro regresso ao passado”, fruto da passagem da Linha Internacional de Data, nos 180º de longitude terrestre (ou antimeridiano de Greenwich, nos 0º do começo da viagem).

Deu para dedicar mais tempo a Tahiti, onde tudo é rampeado, antes de navegar até ao paraíso, Moorea e as suas águas límpidas carregadas de vida marinha. “Fiz snorkelling. Sem praia acessível, valeram-me os músculos do Fernando”, sorri Sofia.

Os EUA seriam o derradeiro país da circum-navegação, que começou com Los Angeles, onde o casal escolheu Santa Mónica e onde sentiu como que num lugar familiar, de tanto vê-lo nos filmes. Do famoso Pier a Venice Beach, de Beverly Hills a Hollywood, percorreu a metrópole dos contrastes e consolidou um espécie de nó na garganta que se vinha formando ao longo da sua volta ao Mundo: “o topo da degradação humana, os sem-abrigo no chão, não sabemos se mortos se vivos e a quem ninguém liga”, pessoas que até cadeiras de rodas usam para transportar a “casa”…

De novo no conforto de um carro, Sofia apontou a um sonho antigo – São Francisco. Desistiu de Yosemite porque “também não se pode ir a todo o lado e era domingo”, parou na bela Monterey e viu os leões-marinhos e percorreu a mítica 17-Mile Drive até Carmel-by-the-Sea, entre florestes de ciprestes e praias desertas.

Finalmente, estacionou em São Francisco onde fez “tudo a pé”, pôde andar de elétrico (com rampas de acesso) e “subir” as famosas colinas com Fernando a trabalhar os músculos. Regressou encantada numa viagem com escala em Toronto para cortar a distância até Lisboa. E com mais algumas lições na bagagem que deixou no blogue Just Go by Sofia.

“Mais do que uma viagem, é uma experiência de vida e um desafio, já que fisicamente, para mim, não é leve”. Para lá da descoberta pessoal e da gestão do cansaço e das emoções, “é aprender a lidar com frustrações quando alguma coisa não corre bem. Estando em cadeira de rodas é mais do que certo”.

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