Um presépio-lapinha na Aldeia Etnográfica integrada no mercado de Natal do Funchal (Foto: Maria João Gala )

O que faz do Natal da Madeira uma época única? Não. Não é o facto de ser o prelúdio do fogo de artifício de passagem do ano. São os presépios. Porque contam a história da ilha, ela própria um presépio. E são as missas do parto.

Mal a noite se anuncia, as encostas do Funchal acendem-se devagar, como um um desenho em dominó que alguém empurra de baixo para cima. Correntes de lâmpadas enfeitam as estradas de outra forma impercetíveis, desembocando inevitavelmente numa igreja iluminada. Visto do nível do mar (dos decks dos navios de cruzeiro, entenda-se), a madeira que se estica até ao breu é a mais bela representação de um presépio.

Decorridas umas horas, amontoamo-nos numa carrinha a enganar o frio e subimos pelo novelo de ruas que constroem esta urbe densa e íngreme, atrás de fios de luz entretanto desligada para deixar as gentes descansar. Mas há luz nas igrejas. É até uma delas que vamos. O Sagrado Coração de Jesus, na Boa Nova.

Chegámos já a missa começou e os paroquianos espalham-se pelo adro frio, enfiados em casacos quentes e gorros, a ignorar o odor a vinha-d’alhos que haverá de aquecer a alma daqui a nada, a olhar o padre Toni de Sousa no ecrã de televisão colado sobre a porta do templo e ao fundo da barraca de festa.

Fala de violência doméstica, fala, até, nas entrelinhas, de política numa Madeira em crise governativa. Fala de festa e de Natal, de tempo de paz e perdão, de bailinho, claro. De coisas que são, afinal, apenas bom senso numa sociedade educada e respeitadora do próximo, coisa simples de que muitos se esquecem na voracidade dos dias.

As luzes azuis e vermelhas das árvores disfarçam a escuridão, hoje não há estrelas no Funchal, apenas pontos de luminosidade nas várias igrejas, todas com a sua missa do parto, que é a isto que vimos. É a primeira de nove, uma por dia até às vésperas do dia do nascimento de Cristo, a simbolizar os nove meses de gestação de Maria. Altura de celebração da vida de Cristo, mas sobretudo da nossa, das gentes. Porque missa, aqui e agora, é comida e bebida.

Há cacau quente, sim, mas há poncha. E há sandes de vinha-d’alho e de fios de galinha desviados da panela preparada para ornamentar a canja. Porque há canja também. E cacau, a nosso ver, casa pouco com tudo isto. É o resultado de uma semana de trabalho do agrupamento de escuteiros da paróquia, que se traduzirá, ao longo de nove dias, em perto de mil quilos de carne em vinha-d’alho, 30 quilos de carne de frango, 200 litros de poncha. Sim, admite Luís Sousa, que gere os trabalhos, é pouco, mas a polícia está aí na curva (já nos tinham avisado quando enfiámos o primeiro trago da famosa bebida madeirense).

E tudo isto é o cheiro à Madeira natalícia, às sete da manhã de um domingo frio que o padre Toni faz por animar com uma guitarra e um copo numa corrente pendurada ao pescoço, no meio de uma roda de cantares e dançares felizes.

No reduto de silêncio da igreja do Sagrado Coração de Jesus, esvaziada dos comensais, descobrimos o presépio-lapinha, de papel moldado e pintado de viochene para simular o chão madeirense, em socalcos que aqui são poios, com grutas, em pedra cortada por levadas, água a correr, luzes aqui e ali, animais e, num canto, José com o menino ao colo e Maria deitada, a descansar do parto. Uma nota de modernidade que combina com a prédica de Toni e está bem.

Às nove estamos prontinhos para ir dormir um bocadinho. Nós e a Madeira toda que madrugou para a missa. Porque vai ser preciso acordar para almoçar. Comer portanto.

O presépio-lapinha da Aldeia Etnográfica integrada no mercado de Natal do Funchal (Foto: Maria João Gala )

O alimento é precisamente o centro do outro presépio madeirense, o presépio em escadinha, que é aquele em que é difícil não tropeçar numa simples deambulação pela ilha. Está no Mercado dos Lavradores, está no mercado agrícola do Santo da Serra, está nas montras privadas do Funchal, está nas igrejas, está na sala de refeições do hotel, está no teatro, está na Casa-Museu Frederico de Freitas, colecionador convicto apaixonado por tudo, incluindo presépios, e que por esta altura dizia invariavelmente aos amigos: “Venham conhecer os nossos nascimentos”. É omnipresente.

Feito de patamares antigamente feitos com as caixas de medida do trigo, cobertos de pano vermelho, inspirado nos altares das igrejas, constrói-se como um agradecimento, com alimentos em cada andar e o menino no topo.

Trigos ancestrais da Madeira, frutos, sobretudo o pêro, que é uma maçã pequena de que por cá se faz sidra, outrora chamada de vinho de pêro. Chegou à Madeira com a vinha, porque a Madeira era uma etapa de navegantes e o vinho era a água possível nos navios, que se mantinha potável ao contrário daquela. A tradição fez com que, hoje, se contabilizem mais de cem variedades de maçãs na ilha, muitas ainda por catalogar.

E estão invariavelmente no presépio (e à venda nos mercados, minúsculas), ao lado da tangerina que é a melhor fruta da época, da castanha que engrossa os pratos, dos brindeiros que são os pães pequenos para a pequenada, dos licores. O conjunto é encimado por um arco de alegra-campos e enfeitado com cabrinhas (as plantas endémicas, entenda-se), numa perfeita mimetização da paisagem e dos costumes, como nos explica o investigador Martinho Mendes, investigador no centro de estudos de História do Atlântico Alberto Vieira, que fala do Natal como uma “época sinestésica”.

No final, estes presépios são pequenas grandes obras de arte, expostas na montra em que se transforma o Funchal no Natal. Uma belíssima desculpa para voltar à Madeira, em suma. Essa e a missa do parto liderada pelo padre Toni.

Um presépio em escadinha numa montra funchalense (Maria João Gala)

Partilhar