A Turquia é feita de várias Turquias. Encerra dentro dela mesma tantos carimbos de diversidade e faz-se, simultaneamente, identidade única moldada a barro sólido impenetrável. A Turquia de Izmir é diferente da Turquia de Istambul, como a Turquia de Istambul pouco tem de irmã da Turquia de Hatay, ou a Turquia de Hatay nada deve em semelhança aos balões coloridos que fazem das montanhas da Capadócia chamariz.
A Turquia de Izmir é uma Turquia mediterrânica – não tocasse ela o extremo ocidental do enorme país, oito vezes superior em tamanho a Portugal. A Turquia de Izmir é um longo passado de história convulsa que se dá ao mar Egeu numa baía imensa de onde pode ser avistada em todos os seus ângulos e feitios. Águas de poucas ondas e calmaria constante, paisagem infinita que se torna vizinha de nós próprios quando a acompanhamos naquele longo calçadão da cidade, por alguns comparado (não sem uma certa razão) ao que se fez famoso no Rio de Janeiro – há um troço, até, que o copia no empedrado que imita as ondas do mar, apenas faltando a calçada portuguesa para ser fiel ao chão carioca. E há a margem do outro lado do mar, a que só se acede de barco porque pontes não as há, o que leva a um trânsito frenético mas estranhamente ordenado de ferryboats durante as horas diurnas.
Oito mil e quinhentos anos de História guardam-se naquelas paredes de imensa maioria muçulmana, onde não cabem atribulações religiosas. “Izmir é tolerante e orgulhosa das suas raízes. Aqui, a religião não divide, aproxima. Continuamos a ter 12 igrejas e nove sinagogas”, descreve Aylin Szilagyl, guia turística e especialista em tudo o que são os segredos de uma Izmir “muito aberta a todos”.
Com pouco mais de três milhões de habitantes, Izmir é a terceira área urbana mais populosa da Turquia, apenas ultrapassada pela gigante Istambul e por Ancara, a capital. A sua denominação pode ser aportuguesada para Esmirna, o que remete para os primórdios dos tempos de ocupação grega, que depois foi romana (então constituindo-se como um dos principais centros do início do cristianismo na região), posteriormente otomana e um dos principais portos europeus e internacionais, onde se cruzavam mercadorias e pessoas vindas das mais diferentes paragens geográficas, oferecendo-lhe toques de modernidade e de cosmopolitismo difíceis de igualar e que ficaram cravados para sempre em Izmir. Um baralho cultural feito de séculos longos a que a História deu o cimento que agora a solidifica como a porta de entrada numa Turquia feita de múltiplas veias distintas com identidade comum.
O homem que fala em sorriso
Para a sentir pura em Izmir, a essa identidade tão própria da Turquia, basta mergulhar no bazar Kemeraltı, o maior mercado ao ar livre da cidade, que desemboca na Hisar, a maior mesquita, e dá acesso prático a alguns símbolos locais, como a Praça do Relógio, cujo relógio que lhe dá nome e fama foi destruído por dois violentos sismos mas continua a imperar tal qual fosse o original desde a inauguração, em 1901.
Labiríntico, como todos os bazares que se prezem, o Kemeraltı merece ser percorrido sem olhar para os ponteiros. Só assim se sentirá na pele o que é o movimento perpétuo daquelas ruas e vielas de lojas abertas ao exterior feitas de gente pronta a regatear preços enquanto oferece chá turco e pedaços de amizade, só assim se assimilam os diferentes odores que percorrem o ar, só assim se percebem as cores – tão diferentes de loja para loja –, só assim se olha nos olhos aquela gente que faz de Izmir fluxo contínuo de vida. Só assim se sente a cidade nos dedos tal como ela é em genuinidade.
Pode ser que por lá encontre Mehmet, rei da Duayen, pequena esplanada com não mais do que quatro apertadas mesas de plástico e cozinha minúscula virada para a rua, onde este homem, idoso com vigor, se debruça em si mesmo diante de pequenos fornos e com eles entra como que num diálogo muito próprio, ritual interno que só eles compreendem. “É o maior especialista em kumru de toda a Izmir”, diz-nos o filho, em inglês, porque Mehmet nada fala, apenas vai sorrindo. Kumru é uma pequena sandes composta por tomate, queijo e salsicha, a que pode ser acrescentado pepino e/ou pimentão. Ligeiramente aquecida, serve-se embrulhada num guardanapo simples que a cobre pela metade e que não deixa escorrer a gordura natural que se solta quando é levada à boca e experimentada, numa mistura única de sabores que parecem alquimicamente combinados para parecerem um só.
E Mehmet volta a sorrir quando olha a reação à sensação da prova. Agradece encolhendo os ombros, qual criança tímida. Sorri de novo. Sorri muito, Mehmet, como se todas as suas palavras fossem sorriso.
Para descansar no Kemeraltı, vale sentar numa das dezenas de esplanadas e acompanhar um típico café turco – há que o pedir assim, para que não lhe tragam um corriqueiro expresso – com um Churchill, simples e refrescante bebida que combina água gaseificada, gelo, limão e umas pitadas de sal que a fazem saber a mar e prometem deixar a sede para trás. Ninguém sabe porque a batizaram assim, com o nome do primeiro-ministro mais famoso da Grã-Bretanha, mas sabe-se que aquele combinado, esse sim, ficou para sempre.
Capital das noivas
Izmir também é feita de vestidos para noivas. Há lojas às centenas dedicadas ao ramo, dando-lhe foco de atração não evidente à partida, a que é difícil fugir tamanha a evidência do negócio, facilmente encontrado em qualquer canto, até nos discretos.
“Um vestido de qualidade feito com os melhores materiais pode ser comprado a partir do equivalente a 400 euros. Ou menos. Daí que muitas europeias aqui os encomendem, assim como mulheres do Médio Oriente e do resto da Ásia”, dizem à Volta ao Mundo.
“Somos a capital das noivas”, brincam, falando sério. Há-os, aos vestidos, de todos os feitios e para todas as culturas. Dos mais arrojados, como se costura de Paris se tratassem, aos mais respeitadores das tradições muçulmanas, igualmente pejados de classe embora mais sóbrios. Inundam as montras que preenchem avenidas inteiras, algumas a ocuparem prédios do primeiro ao último piso. Pela noite, as lojas mantêm-se iluminadas, oferecendo um espetáculo a que apenas faltam néons para que se torne mais colorido.
Izmir tornou-se chamariz também por isso, por acolher fábricas e negócios abertos relacionados com um ramo de oferta de concorrência fácil, tal a comparação entre os preços praticados e a qualidade acima da média dos materiais. Como se fosse um espetáculo à parte dentro do espetáculo global que é a cidade contada em si mesmo de tanta história, gente e caminhos.
Para despedida desta Izmir plural, vale a pena uma subida ao elevador – Asansör, em turco – mandado construir em forma de torre de tijolos provenientes de Marselha pelo banqueiro judeu Nesim Levi Bayraklıoğlu, em 1907, para unir a parte baixa à íngreme zona alta da cidade, cujo acesso se tornava incomportável de tão delicado para peões e, sobretudo, transportadores de mercadorias.
Do topo do Asansör a vista de Izmir é única, postal que a retrata num todo. A descida desemboca na rua Dario Moreno, homenagem a um famoso cantor turco de origem italiana que fez sucesso no século XX e ficou eternizado naquela artéria liberta de automóveis onde pontificam cafés à sombras de árvores de folhagem generosa, bares de música ao vivo e outros estabelecimentos que pedem visita. E onde a arte urbana é senhora de (quase) todas as paredes, como se fosse exposição permanente a céu aberto.
Éfeso, mágica viagem ao passado
Explorar a diversidade histórica e cultural da região de Izmir é conhecer a mítica cidade antiga de Éfeso, construída pelos gregos no século X a.C., onde o filosofo Sócrates deu aulas (ainda lá está o anfiteatro onde brilhava) e destruída por duas vezes, a primeira no ano 263 pelos godos, a definitiva em 614 por um violento terramoto que até alterou o sentido do mar e das marés. Restam as ruínas, espalhadas por caminhos que guardam a riqueza de um passado único, expostas em percursos que ajudam a explicar como foi viver, estudar e trabalhar ali.
Uma hora de caminho por estrada impecável desde Izmir e eis-nos apresentados a um museu vivo que faz sentir como o tempo é conceito que ultrapassa qualquer limite que o Homem lhe queira impor.
Em Éfeso merecem contemplação inteira a biblioteca de Celso, cuja fachada trabalhada remete para a generosidade da imaginação romana, e o anfiteatro de Ágora, onde gladiadores se confrontaram com leões em combates desiguais, para gáudio das multidões que enchiam aquele estádio da antiguidade. No fundo, tudo é merecedor de atenção profunda. E se não houver relógio que interrompa o tempo para que se possa visitar aquela imensidão de saber ao ar livre, um moderno museu interativo explica o resto.
“Temos mil a 1500 visitantes diários e queremos alcançar cada vez mais, desde jovens a famílias inteiras”, explica-nos Fatma Orensin, a diretora do Ephesus Experience Museum. “Se no futuro for possível captar visitantes de países diversificados, será ótimo. Uma forma de Éfeso chegar a mais pessoas.”
A menos de dez minutos de automóvel dali, apresenta-se-nos aos olhos o que resta do templo de Artemis, uma das sete maravilhas do Mundo Antigo. Surge discreto, quase escondido no interior de Selçuk, pequena cidade de 40 mil habitantes. Construído em homenagem à deusa grega da caça, foi o maior de todos os templos helénicos. Dele sobra uma imponente coluna, das 127 que originalmente o compunham.
São 20 metros de altura que parecem tocar o céu. Solitária, sugere pedir proteção. Clássica, implora por atenção. Artística, reserva espanto. Outras colunas, segredam-nos, podem ser encontradas no British Museum, em Londres. Como tantas outras representações originais da antiguidade clássica, aliás, sem que se perceba o porquê – discussões para outras núpcias e diplomacias, certamente.
Şirince, a protetora do apocalipse
A paragem em Selçuk é pretexto perfeito para também visitar a pequena aldeia de Şirince, a menos de 10 quilómetros que parecem eternidade em estrada que corta a montanha por entre curvas sucessivas que fazem olhar de pertíssimo para precipícios íngremes e casas isoladas no meio daquele muito verde que preenche rochedos graves e secos, qual combinação impossível. Há plantações de tomates, há olivais imensos, há macieiras e outras árvores de fruto que se perdem de vista.
E há uma rota que parece filme de tão desafiante às leis do impossível. Mas vale a pena o sacrifício, que acaba por não o ser dada a experiência única de conhecer na primeira pessoa como é possível dois autocarros de largura generosa cruzarem-se no emaranhado daquele asfalto quente e sinuoso e quase dançarem em desafio para ganharem o seu território e seguirem viagem incólumes.
No final daquele turbilhão, eis que nos é apresentada em pleno Şirince, A Bela, segundo a denominação original. Tão colorida é que, de facto, o apodo se lhe encaixa sem exagero algum.
Ruas de pedra escorregadia antiga unem lojas de artesanato abertas a cada janela de espaço. Repara-se em casas que parecem querer comer a montanha, pessoas que se sentam em bancos a olhar o movimento constante como se assim quisessem contar o tempo sem pressa alguma.
E numa escola que deixou de ter crianças e agora é um museu/restaurante, que se estende num átrio forrado com árvores de copas frondosas debaixo das quais alguém prepara com prazer e denodo café turco nos seus métodos mais tradicionais e serve vinhos de fruta, sinal de tradição ancestral e de simpáticas boas-vindas. E há gatos, muitos gatos, a comprovar que a Turquia, de uma ponta a outra na sua imensidão, é também deles feita, quais divindades animais a merecer devoção humana permanente.
Sobra também um fenómeno que nunca foi explicado com racionalidade: a 21 de dezembro de 2012, aquele pedaço de terra perdido nas montanhas foi abrigo para centenas de pessoas que acreditaram nas previsões dos maias que apontavam aquele dia como o do fim do Mundo e ali se quiseram proteger. Não houve apocalipse, claro, e Şirince pôde continuar a viver tranquilíssima como sempre.
Vinhas, praia e mar quente
Nas redondezas de Izmir, região rica em variedade, sobram surpresas. Uma delas é Urla e os seus vinhedos, que dão cor especial a um vale imenso. Daquelas videiras faz-se vinho preparado com esmero. “Utilizamos métodos próprios que danifiquem ao mínimo as uvas”, confidencia Ege Ozcan, da Urla Vineyard, empresa criada nos idos anos 1990 que exporta vinhos locais para todo o Mundo. Vinte folhas diferentes dão sabores a uma bebida que na boca varia a leveza de brancos bem frutados à multiplicação de raízes distintas que se podem encontrar nos tintos. “O segredo passa pela forma como os vinhos são guardados e protegidos em pipa até poderem ser engarrafados”, revela Ege.
Urla é também cidade onde se encontra uma peculiar Art Street, que se prolonga para lá do emaranhado bazar local. Há desde lojas de discos onde somos convidados a escutar a música que quisermos descobrir entre centenas de vinis metodicamente guardados, a padarias que deixam no ar cheiro a pão e bolos acabados de sair do forno. É, também, sede de uma escola artística e de galerias pequenas mas enormes na imaginação patente nas obras apresentadas.
E Urla também pode ser ponto de partida para fazer estrada até à ponta mais ocidental da Turquia, chegar a Çesme e ali mergulhar no Egeu, águas quentes e calmas, qual mar que mais parece lago gigante. Em Çesme instala-se o Altin Yunus, um dos hotéis mais antigos da região, datado dos anos 70 do século passado, que nele combina as praias do Egeu com águas termais, em equilíbrio constante. Ali acorrem todos os verões turcos provenientes de todo o país.
“Temos começado a captar hóspedes de outras nações europeias, nomeadamente da Alemanha e da Escandinávia. Todos são sempre bem-vindos”, conta Abdullah Karaca, um dos diretores. Nem nas épocas de maior movimento o Altin Yunus perde a calmaria, quase nele se podendo respirar silêncio.
O mesmo não se pode dizer de Alaçati, localidade de casas baixas pintadas de azul e branco, tão gregas parecem no aspeto. A inspiração é lógica. Afinal, dali até à ilha de Lesbos e a outras vizinhas já pertença da Grécia são apenas curtas duas horas por mar.
Alaçati é feita de ruas estreitas e mantém sinais de localidade a que é dado cuidado especial na aparência e manutenção do casario, não lhe fossem estragar as características próprias em nome do turismo. Mas é feita de multidões imensas que lhe conferem um constante sonoro que parece ecoar nos ouvidos como zumbido permanente. Vão a bares, frequentam restaurantes, compram roupa, espreitam tudo o que ali há para vender – e há muito o que comprar numa Alaçati que é casa de visitantes sobretudo vindos da Turquia.
Não de uma Turquia qualquer, dizem-nos, ali nas redondezas moram as casas de verão dos mais endinheirados, de empresários a artistas. Discretas, a grande maioria, mais opulentas, outras. Quase todas com um pequeno cais onde atracam as embarcações privadas que levam aquelas gentes por passeios demorados pelo Egeu. À chegada, encontram sempre poiso seguro.
Como poiso seguro é aquela Turquia, onde a História se encontra com ela própria e as influências do passado se conjugam numa unidade de massa sólida, feita de gente sempre pronta a estender a mão alegre a quem vem de fora.
A Volta ao Mundo viajou a convite da Go Türkyie e Pegasus (reportagem originalmente publicada na edição de outubro)
GUIA DE VIAGEM
IR
A companhia low-cost turca Pegasus Airlines conta com três voos semanais diretos entre Lisboa e Izmir, com duração aproximada de quatro horas.
As ligações tiveram início em maio deste ano e, segundo a empresa, contam com “uma taxa de procura na ordem dos 85%”. Os preços arrancam nos 153 euros (ida e volta) durante o mês de outubro.
A Pegasus conta também com voos dois voos semanais Lisboa/Ancara, com bilhetes desde os 145 euros (ida e volta). A partir de Izmir, igualmente com a Pegasus, pode viajar para dezenas de cidades turcas por preços que partem dos 30 euros.
DORMIR
Mövenpick Hotel Izmir
Izmir. Quartos desde 126 euros por noite.
Antmare Hotel
Alaçati. Quartos desde 144 euros por noite.
Altın Yunus Hotel & Spa
Çesme. Quartos desde 95 euros por noite.
COMER
Soirée
Izmir. A partir de 25 euros.
Artemis – Restaurante e Winehouse
Şirince. A partir de 10 euros.
Asma Yaprağı
Ovacik, Çesme. A partir de 25 euros.