Foto: Pedro Correia

O Brasil que conhecemos das novelas é o Brasil quente das praias e cachoeiras, da água de côco, do arroz com feijão, das favelas e do Carnaval. O país tropical de braços abertos como o Cristo no morro. De sotaque carioca, paulista ou nordestino. Que dança nu, batucando o corpo moreno ao ritmo do samba nos dias e noites de verão. É tudo isso, sim. Mas também há Brasil no resto do ano e para lá do Rio de Janeiro e São Paulo: nas cidades históricas de Santa Catarina, nos passeios de balão sobre os canyons frios, nas baleias junto à costa e na ilha tranquila que se ufana de ser neta dos Açores. Portugal descobriu o Brasil, diz-se seguindo a narrativa colonial. Mas, mais de cinco séculos depois, não o conhece por inteiro. E há tanto para conhecer.

Sérgio é manezinho. Edivaldo é manezinho. Bruno é manezinho. Eunice é manezinha. Quase todos aqui em Santa Catarina são orgulhosamente manezinhos. O nome vem de Manuel. Dos Manueis que vieram dos Açores entre 1748 e 1754 para habitarem a ilha. Chegaram aqui entre seis e sete mil açorianos, incentivados pela coroa portuguesa, que viu na emigração açoriana para o Brasil uma forma de povoar o litoral sul da então colónia enquanto aliviava a pressão sobre um arquipélago pobre e sobrepovoado. Muitos fizeram aqui vida e, três séculos depois, as raízes profundas que criaram num pedaço de terra que tem o braço agarrado ao continente e o resto do corpo mergulhado no Atlântico ainda dão frutos de terra e de mar. “Quase todas as pessoas nascidas em Santa Catarina são descendentes de açorianos”, conta-nos Sérgio, historiador e presidente da Casa dos Açores de Santa Catarina, com seis ilhas açorianas a correrem-lhe no sangue.

Foto: Pedro Correia

Mística “ilha das bruxas” ou “da magia”, por conta das lendas históricas sobre criaturas mágicas, Santa Catarina compõe a maioria do município de Florianópolis, capital do estado. Rico em encantos tamanhos, com regalos para amantes de arquitetura e gastronomia, o centro histórico de Floripa reúne o melhor da cultura da ilha, cuja economia cresce assente no turismo e na tecnologia. Pelas janelas da fachada do Museu de Florianópolis, coração da cidade, veem-se as enormes ramificações da centenária figueira que é símbolo local. No centro da Praça XV de Novembro, os galhos da “figueira dos desejos”, em pé há mais de 150 anos, abraçam quem sob ela descansa. Conta a sabedoria popular que, para voltar à ilha, há que dar uma volta à árvore no sentido dos ponteiros do relógio, duas para arranjar par, três para casar e sete para cumprir um desejo difícil (na dúvida, fazer todas).

Mas a melhor volta é a que se dá em demorada deambulação pelo mercado público, onde manezinhos vendem desde peixe, marisco e fruta até decoração e artesanato. Há caldo de cana por todo o lado e renda de bilros não falta. No exterior do mercado, no pequeno Armazém da Renda, Edilvado, 68 anos, exibe com mestria a prática que aprimora há 30 e na qual se iniciou era ainda um rapaz, tecendo com a prima às escondidas, que rendas não era coisa para homens. Veio provar o contrário: os dedos manuseiam os bilros com invejável perícia, enquanto garante sorridente que há de um dia ir a Portugal. O céu baço que nos recebeu num fim de inverno ameno não deixa ver a luz que nasce das águas atlânticas e se esconde nas baías do outro lado de Floripa – também lhe chamam assim. Mas o calor que esta ilha emana não vem só do sol, vem das pessoas também. E, nesse domínio, nunca se tem frio.

“A décima ilha dos Açores”
Santo Antônio de Lisboa, assim com o “o” fechado, sem acento agudo como o que conhecemos, mas igualmente de cabelo rapado no meio da cabeça e com o menino ao colo, descansa inerte, sem outro remédio, a ver o cortejo passar. O padroeiro que a estátua homenageia dá o nome a um dos mais antigos povoados do estado de Santa Catarina, que viemos encontrar em alegre romaria na primeira sexta-feira de setembro. A cerca de 15 quilómetros do centro de Floripa, na costa ocidental norte da ilha – “a décima dos Açores”, dizem –, Santo Antônio de Lisboa é um bairro pequeno e charmoso junto ao mar, que a Festa do Divino faz mexer como mais nenhuma por entre as principais ruas, onde não há prédios nem grande comércio, só casas baixinhas coladas, com fachadas coloridas e traço colonial. Chegado a Florianópolis por mãos açorianas, o Divino celebra a fé, a cultura e tradição locais, empunhando com orgulho a história e as origens da terra.

No adro da Igreja da Nossa Senhora das Necessidades, construção simples de origem portuguesa virada para a praia (um dos melhores lugares da ilha para ver o pôr do sol), a banda sopra habilmente o início do cortejo pelo Caminho dos Açores. Sete jovens meninas de vestidos pomposos seguram cada uma numa bandeira. Logo na frente, junto à do Brasil e à de Santa Catarina, a dos Açores chama a atenção dos visitantes portugueses. Sérgio, que também participa na procissão, havia-o explicado mais cedo, quando o cheirinho a peixe grelhado tomava conta da vila em preparações:

“As pessoas têm muito orgulho de se dizerem açorianas mesmo sem nunca terem ido aos Açores. É muito difícil encontrar um catarinense que não tenha lá um pé”. Vimo-lo por toda a parte. Na placa da rua principal. Nos nomes dos restaurantes. No “menu português” do Café da Praça. Na farinha de mandioca catarinense, mais fina do que no resto do Brasil, por causa da influência açoriana nos resistentes processos de produção. E vimo-lo na conversa com Dona Eunice, 70 anos, sentada sozinha num banco da igreja à espera da missa. Mal o sotaque europeu lhe interrompe os pensamentos, conta que descende de portugueses e que gostava um dia de provar um bolinho de bacalhau (aqui é mais bolinho de siri). Pergunta se já fomos a Ribeirão da Ilha, mais a sul, diz que lá também há sabor açoriano. E fala verdade.

Foto: Pedro Correia

De estancas assentes sobre a Baía do Ribeirão, o Rancho Açoriano, da família Gonçalves, descendente da Terceira, abriu nos anos 90 para vender ostras e, quase 30 anos depois, é uma referência na produção do bicho. Há-as de todas as formas na carta do chef Bruno: ao natural, ao vapor, aceboladas, ao vinagrete e as preferidas dos locais, embora saibam mais a queijo do que a ostra… gratinadas. Daí é um tirinho até à Igreja da Nossa Senhora da Lapa e às casinhas mimosas de frente para as águas tranquilas que se enrolam na faixa de areia grossa da Praia do Ribeirão da Ilha, por onde irrompem esplanadas palafíticas com vista panorâmica para uma pintura 4D em tons de azul e verde em dias de sorte.

Pelas entranhas da mata até ao topo do morro
Por falar em pinturas, o céu noturno vai clareando devagar e já se vê um alaranjado suave a pintar-se na linha do mar da praia do Santinho, costa nordeste de Floripa, onde o sol nasce no oceano. Neste canto da ilha cercado por águas cristalinas, imponentes falésias e vegetação nativa, é tudo sobre praia e trilha (é assim que dizem). Muito procurado por turistas sul-americanos e surfistas, este santuário natural tem vários alojamentos de férias nas redondezas, entre residenciais simples, áreas de campismo e um resort de luxo. Com acesso direto à praia e ligação umbilical à cultura da ilha, o magnânimo Costão do Santinho participa entre maio e junho na pesca da tainha, que, mais do que ofício artesanal, é património herdado da colonização açoriana e mobiliza a região num “espetáculo cultural”.

Foto: Pedro Correia

Estamos em setembro, por isso a safra é outra. São cinco e meia da manhã, hora de subir o trilho íngreme envolto pela exuberante Mata Atlântica que conduz ao cume do Morro das Aranhas, com prometida vista para o nascimento do astro-rei. Os dias cinzentos anunciam um parto difícil no miradouro, mas enquanto há pernas para escalar pedras e raízes, há esperança. Quarenta minutos pelas entranhas da mata acima e o espetáculo acontece a 246 metros de altitude. De um lado, visão panorâmica sobre o Santinho e a Praia dos Ingleses com as suas enormes dunas, gigante faixa alva entre o bloco residencial e a mancha verde do extremo leste da ilha. Do outro lado, as águas revoltas da Praia do Moçambique, virada para os morros. E, no topo de uma rocha estreita para onde, em corajoso equilibrismo, tem de trepar quem quer ver a estrela da companhia, ei-la brilhante e laranja a desabrochar do mar. Os raios do sol passam poeticamente por entre os galhos das árvores e entram-nos na retina, antes de o céu se voltar a fechar outra vez. É a ilha da magia.

Foto: Pedro Correia

Saímos da ilha rumo à Copacabana do sul
Vários e gigantes outdoors da família Aveiro – essa mesmo – anunciam por toda a parte a chegada a Balneário Comboriú, na área continental do estado de Santa Catarina. A cidade a norte de Floripa, de que Cristiano, Dolores e Katia são embaixadores e que tem o metro quadrado mais caro do país, apresenta-se a quem chega como o “Dubai brasileiro”. No Brasil há muito esta tendência de olhar de baixo para cima para o que é de fora, como se ganhasse estatuto em ser menos Brásiu e mais Brazil, embora nos cante Elis Regina que o primeiro nunca foi ao segundo e o segundo não conhece o primeiro. Com prédios altíssimos virados para o mar e uma fileira de restaurantes a poucos metros da Praia Central, Balneário tem um bocadinho de Copacabana, mas ao estilo catarinense, mais rico e seguro (e também – ou por consequência – mais bolsonarista).

No cimo do morro mais alto, o Cristo Luz, a fazer lembrar o Rei do Rio, mas segurando uma lanterna num dos braços em vez de ter os dois abertos, encara de frente o tal Dubai fluorescente quando se faz noite. Em baixo, são muitos os que se fotografam na Avenida Atlântica com a roda gigante ao fundo – ousadamente iluminada com a bandeira de Portugal para assinalar a presença portuguesa no dia em que se comemora a independência do Brasil, 7 de setembro. Colada ao passeio marítimo, a Avenida Atlântica segue em rodopio como se fosse dia: comerciantes vendem milho, joga-se ténis no areal e há quem leve à risca o nome da cidade, mergulhando no mar noturno.

Mas nem só de banhos vive Balneário: também vive da Aventura Jurássica, o maior parque de dinossauros animados do país; do Oceanic Aquarium, com mais de 140 espécies oceânicas; e do Parque Unipraias, imperdível para quem quer gritar uhuuu com os decibéis no máximo. A atração-rainha são os 50 segundos de adrenalina em que sobrevoamos a exuberante natureza 240 metros abaixo dos nossos pés, que planam atabalhoados na estação das Laranjeiras, a escassos passos da praia com o mesmo nome, uma das mais vibrantes da cidade, envolta em morros, água de coco e caipirinhas.

Foto: Pedro Correia

“Como é viver no paraíso?”
“Hoje estão dez baleias na praia”, entusiasma-nos Jean Pierre, nome francês, alma catarinense. Sabe tudo o que há para saber sobre as baleias-francas que chegam todos os anos à costa sul de Santa Catarina, entre julho e outubro, fugindo das águas gélidas da Antártida. Percebe-se. Fosse eu um cetáceo com 18 metros de comprimento e 60 toneladas, também escolheria a atmosfera calma da Praia da Gamboa para dar pinotes e mortais à retaguarda a 20 metros da costa, onde não chegam os predadores. “Temos de ir andando senão não aparecem. Elas gostam de nos fazer suar. Não podemos ficar sentados à espera.” Então adiante: seguimos com a brisa que nos deleita. Mas hoje as meninas estão envergonhadas e ficam-se pelo entra e sai tímido da água. Ruben, gaúcho, deixou a empresa de transportes e transportou-se para aqui, um dos melhores lugares de observação de baleias da região. Passa as noites da reforma a ouvir a sua respiração, numa casinha pequenina de portas abertas para o mar. O motivo está escrito numa placa de madeira na casa de banho: “Ser feliz não é um sonho, é uma decisão”.

Praias há muitas, como os chapéus à venda nos quiosques ambulantes que rolam pelos areais. Mas das mais urbanas às mais selvagens, cada uma é singular. Escondida por um casario irresistível e abrigada pela Serra do Tabuleiro, a Praia de Garopaba, abaixo da Gamboa, é um desfile de bancas de pescadores e ranchos piscatórios assentes na areia. Desfile é a palavra certa. Os homens do mar mostram os peixes que amanham com a vaidade de quem está numa passarela. Voltinha para a esquerda, voltinha para a direita, abre a boca ao bicho, dá um sorrisinho. “Pode fotografar para Portugal, fotografa!” Seguindo para sul, seria a hora do pôr-do-sol se houvesse sol para se pôr. O céu está cinzento, mas não esbate a beleza imponente da Praia do Rosa. Colossal e agreste, chega-se a ela pelo meio do mato. Camilly e Manuela, amigas adolescentes, correm-na a cavalo e afugentam os urubus à volta de um cardume que deu à costa sem vida, enquanto ao fundo há quem passeie de prancha na mão. A partir do EcoResort Vida, Sol e Mar, delícia de lugar, a vista para a brutalidade atlântica tropical rouba as palavras todas. “Como é viver no paraíso?”, alguém pergunta. A resposta é um sorriso silencioso de quem sabe que é verdade e que à noite ainda tem roda de samba no boteco ao lado.

Foto: Pedro Correia

Levitar no vazio branco dos canyons
Andar num balão de ar quente está na lista de desejos de muito boa gente. Subir na alvorada e ver o sol nascer lá de cima com as montanhas em redor é o que leva tantos locais e turistas à “Capadócia Brasileira”, na zona da Praia Grande, sul de Santa Catarina. Um bicharoco dos maiores pesa 390 quilos e a experiência custa à volta de 95 euros por pessoa. O vento leva-nos até aos 1300 metros de altitude, com a ajuda de Daniel. Vamos subindo pouco a pouco: os campos de arroz encolhem até parecerem uma tablete de chocolate e os balões que levantam voo lá em baixo são pintarolas. O especialista em balonismo, catarinense apaixonado, vai contando dos casamentos que se pedem aqui entre os canyons, onde chega a nevar nos dias mais frios. E dos que se perdem também – há cada vez mais gente a celebrar divórcios junto ao céu. A ideia era ver a aurora do dia, mas a Natureza tem os seus desígnios e a surpresa foi outra. Há que subir além das nuvens para ver o sol nascer e é nesse caminho, ainda antes de a bola laranja nos espreitar, que somos arrebatados pelo fenómeno da condensação. De repente, fica tudo branco. Não é um branco translúcido que deixa ver a paisagem desfocada. É um branco opaco que nos prende numa espécie de vazio, como se estivéssemos a levitar no nada. E só isso é tanto para os tantos que só queriam ver o sol.

A Volta ao Mundo viajou a convite da TAP e do Turismo de Florianópolis (reportagem originalmente publicada na edição de outubro)

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