O centro de um corpo é o âmago da vida. Aqui, chama-se Órgãos. Um pulmão verde, um coração cheio, uma surpresa perene, por muitas vezes que se olhe a ilha capital de Cabo Verde. Um ilha feita de história, de cultura, de morabeza e de beleza, longe das praias de areia branca nas margens de resorts.
O espanto é algo que demora a desinstalar, como se a nossa mente fosse um computador lentificado e teimoso a processar dados. O espanto dura há mais de dois anos. E parece-me que vai ser eterno. Estou na zona dos Picos, com a vista enfiada entre o Pico da Antónia e a sua máxima altitude na ilha e a sucessão de acidentes geológicos, chamemos-lhes assim, da zona dos Órgãos. Apetece-me depreender que o nome, Órgãos, vem dessa imagem inaudita de montanhas esguias espetadas no céu, qual órgão de tubos de uma catedral de pedra, a dar sombra tropical a uma terra que todos julgam árida. Aos seus pés estende-se São Jorge e as flores de um jardim botânico, dali em diante Rui Vaz e, imagino-o porque lhe conheço o fim, o caminho do vale em direção à Cidade Velha, esse berço da aventura mundial da miscigenação e do ser crioulo. Por muito que tente convencer-me de que já estive perante aquele quadro, não consigo despregar-me dali, dessa vista que é só possível ali, em Santiago, a ilha capital de Cabo Verde onde os turistas pouco param. É o espanto, perene.
Os Órgãos também poderão ter nome do facto de estarem no coração da ilha maior do arquipélago, admite Danilo, o jovem que nos guia através de um território que é uma descoberta. E que nos mostra lugares com apelidos como São Salvador do Mundo e uma igreja do tempo colonial e casas inacabadas, brutas por fora e bonitas por dentro, que nos aponta a terceira maior árvore de África, uma copa imensa a cobrir meio terreno num vale (mais um), que nos explica as matrículas verdes dos emigrantes que regressaram ao arquipélago com um carro estrangeiro às costas e as matrículas vermelhas da diplomacia, que nos faz atravessar Assomada e as lombas que são “quebra-molas” e nos introduz às imensas teias das imensas aranhas da serra da Malagueta antes de nos estacionar num dos tarrafais desta ilha. Porque há dois. O do Chão Bom, triste repositório da pior parte da História recente de Portugal. E o Tarrafal mesmo, o de uma praia que merece todos os desvios do Planeta.
Mas isso seria depois. Primeiro, paramos no Mercado dos Órgãos. Porque tem, ao lado, um lugar único. O “Espaço Padjudo”, nas mãos de “Mário dos Porcos” e do irmão, ambos de profusas rastas, filhos de Ângela Vaz, atarefada à roda das panelas de ferro e das sertãs enegrecidas pelo lume ao ar livre, e de Manuel Vaz, pintado nas paredes do café. A esplanada cresceu em dois anos, como Samuel cresceu. Dançava, da primeira vez que o vi, titubeante no seu curto ano de vida. Agora está rezingão, ao colo de Mário, o rei da linguiça da terra e do prazer da boa comida. A da mãe dele. Parámos ali à cata dos famosos torresmos. Ainda é cedo. Toda aquela área dos Órgãos é significado de paragem para torresmos no pão regados com uma “noiva”, uma Strela gelada, a cerveja “fidju di téra”, seja qual for a altura do dia, mas Ângela está na hora dos fígados a fritar enquanto as linguiças penduradas como uma cortina sobre o fumo se aprontam para o almoço. Se fôssemos crioulos como os de cá, diríamos a Ângela que “tem mo sabi pa panela”. Tudo é delicioso neste coração de Santiago. Mesmo tudo. Até as gargalhadas dela com vista para os picos-tubos e para o verde estonteante desta Natureza.
Como as casas inacabadas da maioria dos lugares da ilha, Santiago é rude por fora e inacreditavelmente luxuosa por dentro, se por luxo entendermos este exuberante coração verde da terra e o quente coração das almas que a habitam. É provavelmente a maior surpresa de Cabo Verde, por ninguém a esperar, uma surpresa feita de carne e pastéis de milho como só os há em São Domingos, outro lugar do meio, de esmoregal grelhado e arroz de marisco “sabi” sorvido em cima (literalmente) do mar da praia do Tarrafal, no Riba Mar que se ergueu sobre uma rocha-ilha com vista para os coloridos barcos de pesca e um areal alvo a desfazer-se no azul degradê deste Atlântico quente. Aqui não há resorts, pelo menos daqueles que tomam conta de manchas inteiras de território. E há espaço, esse ouro pós-pandémico que desapareceu das nossas cidades. Há, sobretudo, a cultura de Cabo Verde expandida à medida de um lugar com alma e história.
Parte dela está no primeiro Tarrafal onde Danilo evita entrar. Um passado familiar impede-o de ler aquelas paredes erguidas numa terra tragicamente chamada de Chão Bom. Só uma mente sinistra escolheria um lugar assim batizado para nele construir um campo de concentração onde entendia matar lentamente aqueles que para lá atirava. Aconteceu, é obra do Portugal do Estado Novo, do Portugal salazarista castrador de liberdades. Uma exposição inaugurada a propósito dos 50 anos da revolução do 25 de Abril explica que a festa é também a dos 50 anos da liberdade dos que riscaram aquelas paredes, dos que sobreviveram à tortura do calor e da comida propositadamente imprópria, à falta de água e à ignomínia de um médico cujo desiderato era assinar certidões de óbito.
Os números variam conforme as fontes, mas as contas são, ainda assim, dolorosas: 340 ou 361 presos políticos e sociais portugueses, 32 dos quais faleceram no campo, na primeira fase da colónia penal (1936 a 1956), que reabriria em 1962 para receber nacionalistas angolanos (107, dois falecidos), guineenses (100, dois falecidos) e cabo-verdianos (20).
“Salazar se enganou ao escolher o lugar. Pensava que este era o lugar em que todos nós desapareceríamos. Mas ele enganou-se. Enganou-se porque nós – portugueses, guineenses, cabo-verdianos, angolanos – tivemos força e conseguimos sobreviver”, escreveu o angolano Nobre Ferreira Dias, preso ali de 1962 a 1969.
À roda do campo, uma série de casas em banda pintadas do mesmo amarelo é hoje fonte de vida. Há gritos de crianças, ovelhas a passear, roupa colorida a secar entre a vegetação amarela como as casas. Diz-se que são descendentes de presos que se instalaram nas camaratas dos militares aquando da libertação, em 1974. Serão ou não. O Estado cabo-verdiano quis realojá-los num bairro novo, recusaram. Alguns terão andado ali na tropa no quartel em que o campo se transformou. Outros ter-se-ão sentado na escola que também foi até à viragem do século. Hoje, são apenas moradores do Chão Bom, ao largo de um museu de visita obrigatória. E silenciosa. De um silêncio cortante, gelado sob os quase 40 graus do Sol.
Outra parte da História está na Cidade Velha, na ponta oposta da ilha. Está na Fortaleza Real de São Filipe, construída em 1593 pelos portugueses depois do confronto com os homens de Francis Drake e recuperado já dos ataques dos franceses que afugentaram as pessoas para a atual cidade da Praia. Está no património da Rua Banana, talvez assim chamada por ter forma de banana, no pelourinho à beira-mar, nas pedras da meia Sé. Está sobretudo numa das mais antigas igrejas construídas na África Subsaariana, para evangelizar os escravos e dar-lhes um novo nome, a de Nossa Senhora da Conceição, hoje um chão, ou na de Nossa Senhora do Rosário, alva, ou na igreja São Francisco e no que resta do convento homónimo, onde Hélder casou a prima, sim, há casamentos nas ruínas e isso deve ser bonito. Daquele chão pejado de passado nasce milho, nasce cana-de-açúcar, por cima de túmulos perdidos, num pequeno paraíso verde florido à sombra de vegetação tropical, entre séculos de História, no lugar onde nasceu o crioulo que seguiu Mundo nos tristes navios negreiros que Portugal comandava.
A História continua a escassos quilómetros na hoje estendida cidade da Praia que é capital da ilha e do país desde 1858. Sobe ao Plateau, essa colina achatada que se levanta do vale à volta do qual a urbe cresceu, de um lado a Achada de Santo António, a zona abastada com vista desafogada para o mar e o Bairro Brasil da cultura popular a aquecer-lhe as costas, do outro a Achada Grande Frente e a de Trás. As vistas, daqui, são para o areal da Gamboa, com barcos de pescadores e canalha a jogar à bola e, lá no meio da baía, para o “djeu”, ilhéu de Santa Maria, que exibe umas ruínas de uma espécie de presídio ou sítio de quarentena, enfim, um lugar dado a elucubrações, não fosse dar-se a tragédia de ter sido vendido a um grupo chinês que ali em frente construiu um hotel hediondo e imenso e almejava abrir um casino. Algo terá corrido mal no reino da diplomacia dos negócios e, por obra e graça de Santa Maria, a obra está parada.
A cidade faz-se daquilo que constrói todas as cidades de África. Mercados onde se come cachupa ou cuscuz por dois euros, a vida nas ruas, as paredes meio construídas, coloridas ou desenhadas, Cesária Évora a espreitar, mornas e coladeiras em permanente banda sonora, uma rua pedonal que é de 5 de Julho, onde descobri um dos melhores sítios para comer no Plateau: o Bar José da Rosa. Porque oferece peixe cozinhado com amor no ambiente mais simples que se pode pedir, um balcão antigo e algumas mesas despretensiosas, não raras vezes com música ao vivo na esplanada. Ali também me fizeram descobrir outros dos melhores sítios para comer no Plateau: o Quintal da Música, a meca dos “Temperos da Chef Ália”, Ália dos Santos, uma self-made woman que prova a força das mulheres. Cozinheira há 33 anos naquele quintal, chef dele há 24, enche-nos a alma com a arte aprendida sozinha em casa, desde criança, “antigamente tinha que ser” e a mãe dela “não tinha muito jeito”. Veio para a Praia aos três anos, trazida dessa terra de nome lindo, São Salvador do Mundo, e adaptou-se enquanto cresceu. “Já tinha dom mesmo. Depois comprei livros. Depois apareceu a Internet. Fui experimentando. O que eu fazia há 30 anos? Deus me livre!” O que faz hoje é toda a gastronomia de Cabo Verde à boa moda das panelas ao lume. Caril de Cachupa, uma versão com atum, peixe na chapa, peixe no arroz – “Gosto de peixe, não sou muito de carne”, e é peixe daqui, tanto quanto o pescador traz, “Jesus Maria, onde é que vou pôr tudo isso…” Mas o que torna esta belíssima cabo-verdiana de 64 anos incontornável é o arroz à Suriname, “um arroz de lá, mas pobre”, que ela adapta todos os dias. “Meti uma coisa ou outra. E passou a ser à moda da Ália, à moda do Quintal da Música. Hoje tem carne de vaca, gambas, polvo, búzio, bacon, legumes e ovo só para decoração.”
A Praia é também o ar dos bairros populares e a arte que vive neles, como na Rua d’Arte e na praça da avó da cantora Neyna, que apreciamos dos novos calhambeques elétricos sem janelas da Multimarcas – Go Electric City Tour. Porque são pequenos e cabem em sítios esconsos e deixam-nos entrar na alma das ruelas e saudar quem passa, pudéssemos nós percorrer toda a ilha e espreitar, como fazemos aqui, para dentro da vida escancarada deste povo tranquilo que tem uma palavra intraduzível que é só dele. Morabeza. E tem o arroz de Ália: um arroz que é Cabo Verde. Um arroz com alguns todos. Com todos os que importam. Incluindo o meu espanto.
Barceló Praia Cape Verde,
O primeiro cinco estrelas de Santiago
Mostrar que Santiago tem potencial, até pela cultura, “que se implanta mais aqui” do que nas ilhas mais procuradas pelo turismo (Sal e Boavista), que são de praia, foi o objetivo a que se propôs o grupo maiorquino Barceló quando adquiriu o hotel que jazia por abrir havia uma década na Prainha, entre o Plateau e o Farol Dona Maria Pia. Algumas estruturas estavam danificadas, as obras de recuperação levaram cerca de dois anos e só em maio passado abriu o Barceló Praia Cape Verde, o primeiro cinco estrelas da ilha de Santiago, cuja inauguração oficial aconteceu em setembro.
O edifício de dois andares em meia-lua oferece vista para o “djeu” de Santa Maria, de um lado – e, sobretudo, da abertura retangular do solário da suite presidencial –, para o mar aberto quando se está na piscina infinita e na esplanada do bar/restaurante e para a Prainha e o bonito Farol de Dona Maria Pia à hora do pequeno-almoço. Os 80 quartos (vista Prainha e vista mar) e sete suites arrancam nos 200 euros e oferecem o conforto luxuoso e de linhas simples que caracteriza a marca Barceló. Nas paredes há arte africana (mas não de Cabo Verde…) e nas ementas uma oferta que vai do local (cachupa, búzios, esmoregal e outros peixes frescos) ao internacional, de que não podemos deixar de destacar a mousse de kamoka, uma farinha de grãos de milho torrados que mãos divinas transformam numa nuvem excelsa.
Com o habitual de um cinco estrelas – ginásio, salas de tratamentos, espaço para eventos –, o Barceló Praia vive de água extraída do mar, num processo de dessalinização próprio. Assume ter, por enquanto, mais clientes de negócios, dado ter nascido num “business center”: Santiago está a quatro horas da Europa e da América do Sul e é um centro de negócios que o grupo quis aproveitar como porta de entrada em Cabo Verde.
A pré-existência do hotel foi a oportunidade. Atrás veio um segundo empreendimento ao estilo resort na Boa Vista (Occidental Boa Vista Beach) e a prazo virá um terceiro (Marine Club), na mesma ilha. Havendo infraestruturas de transporte que o permitam, a ideia é oferecer pacotes combinados interilhas. Mas as ligações ainda dependem de voos incertos e de barcos, igualmente incertos devido aos caprichos do Atlântico.
GUIA DE VIAGEM
DORMIR
Barceló Praia Cape Verde
Avenida Rotary International, Praia. Quartos duplos a partir de 200 euros.
PASSEAR
Fortaleza de São Filipe
Cidade Velha (Ribeira Grande), cerca de 4 euros
Museu do Campo de Concentração do Tarrafal
Chão Bom, Tarrafal, cerca de 2 euros
Multimarcas Go
Electric City Tour
Tour de uma hora e meia pela cidade da Praia a 75 euros por calhambeque (quatro pessoas). Tel: +238 919 88 59.
COMER
Riba Mar
Tarrafal de Santiago – Mar de Riba, Tarrafal.
Pratos a partir de 9 euros.
Tel: 238 989 73 30.
Quintal da Música
Avenida Amílcar Cabral
70-A, Plateau, Praia.
Arrozes a 13 euros.