Caminho pelas ruas com a minha nova máquina fotográfica. São ruas de casas altas, telhados bicudos e flamengos. Passo por gente a falar outra língua. Não entendem as minhas palavras e por isso quase acredito que não entenderiam os meus pensamentos. Agrada-me imaginar que consigo ver mas que ninguém me vê a mim, pertenço a um mundo fora do mundo.

Olho em volta: a rua, as sombras. Lá ao fundo, uma estátua parada; lá mais ao fundo, aproxima-se a noite e a chuva. Escolho detalhes e aponto-lhes a máquina: um cão sozinho no passeio. E, logo a seguir, no quadrado luminoso das costas da máquina, vejo o cão, de cabeça baixa, parado no momento em que caminhava sozinho. Levanto o olhar, o cão aproxima-se do dono, recebe festas na cabeça. Juntos, dobram a esquina e desaparecem. Na minha memória, o som das patas ainda a rasparem no cimento em cada passo, ainda o seu vulto. Mas, na minha mão, no quadrado luminoso das costas da máquina fotográfica, continua parado no mesmo instante. Talvez para sempre.

Agrada-me imaginar que consigo ver mas que ninguém me vê a mim, pertenço a um mundo fora do mundo.

Lembro imagens desfocadas, mas vejo-as nítidas nas minhas mãos: a torre da catedral, a Fonte de Brabo, a câmara municipal, a Praça do Mercado, as águas do rio Scheldt, árvores no inverno. Olho para instantes que não deixei que passassem: um relógio dourado, o cão sozinho no passeio. Existem ainda. A minha máquina fotográfica nova conserva o mundo. E caminho pelas ruas, não entendo o flamengo que vejo escrito em tabuletas, não entendo as letras de canções que se derramam a partir da porta aberta de bares, não entendo as consoantes pronunciadas por gente que passa por mim e me ignora. Esse fluxo recorda-me o rio Scheldt, a velocidade constante das águas, corrente, como o tempo, como esta tarde que se aproxima do fim.

E, no entanto, escolho momento e suspendo-os no quadrado luminoso das costas da máquina fotográfica. Ao vê-los, estou neles. Existe a cidade que passou, existe a cidade que recordo, existe a cidade que está aqui, a rodear-me: Antuérpia multiplicada pelo tempo e por mim próprio. Existe também a cidade que vejo nas fotografias e que, por isso, continua a estar aqui; existe também a cidade que recordo e em que deixo de acreditar quando vejo as fotografias, mas que continua a existir: eu multiplicado pelo tempo e por Antuérpia.

Do porto de Antuérpia chegam e partem navios. As suas viagens talvez não sejam tão diferentes como o caminho que prossigo nestas ruas, aparentemente sinuosas, a serpentearem entre fachadas, mas com um destino específico, lugar onde chegarei. Tenho a minha nova máquina fotográfica e, no seu interior, os instantes que escolhi; tenho o que me rodeia, pedras, cores, temperatura, esta hora, aqui; falta-me esse lugar onde chegarei, futuro incógnito. Talvez seja disso que falam as marés de gente que passam por mim, ignoram-me porque já me creem lá; talvez seja por isso que não as entendo, estamos em Antuérpias diferentes. Estendo o braço e tiro uma fotografia a mim próprio com a minha nova máquina. Olho em volta, falta pouco para a noite, respiro fundo antes de ver o resultado.

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Crónica publicada na edição de maio de 2019 da revista Volta ao Mundo (número 295).

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