O encanto dos lugares tranquilos

É um país que tem tanto de medieval como de moderno, de boémio quanto de eficiente. A Lituânia é uma Europa que já não existe, bela e orgulhosa de si, calma, refinada e autêntica. Viagem a uma das nações mais antigas do mundo. E mais jovens, também.

Texto de Ricardo J. Rodrigues
Fotografias de Kevin Ribeiro

Quem está na zona histórica de Vilnius e decide atravessar o rio encontra várias bandeiras brancas com uma mão negra desenhada no centro. Uma placa anuncia: bem-vindo à República de Uzupis que, em lituano, significa «o outro lado do rio». É um Estado autoproclamado em 1997 pelos seus habitantes, cerca de seis mil pessoas. Na verdade, não é mais do que o bairro dos artistas da capital lituana, mas tem o seu próprio governo, moeda e Constituição. «Celebramos a independência a 1 de abril», diz-nos Romas Leilikis, um poeta, músico e realizador que também ocupa as funções de chefe de Estado. Encontramo-nos com ele num café junto ao rio, o primeiro que se vê quando se passa a ponte. É, segundo ele, o Parlamento. «Temos as nossas próprias leis e um exército para as defender. O nosso exército é constituído por 11 homens extremamente bem preparados: são todos ministros de Uzupis.»

Ninguém reconhece legitimidade à república senão os seus habitantes e Leilikis diz que essa é a explicação para o lema do seu país ser «Não Lutaremos. Não Venceremos. Não nos Renderemos».

O presidente da Câmara de Vilnius, Arturas Zuokas, vive no bairro e participa habitualmente nos eventos que o governo organiza – exposições de pintura, sessões de leitura, festivais de música. «Ele tem o direito de ser o que quiser, porque isso vem escrito na nossa Constituição», segue o presidente de Uzupis. «Aqui, toda a gente tem o direito a ser indistinto, a ser incompreendido e a apreciar a sua pouca importância.

A única coisa proibida na lei é fazer os outros sentirem-se culpados.» Talvez por isso, o único cidadão honorário da república seja o Dalai Lama, o líder espiritual do Tibete. Não que ele tenha conhecimento disso.

Há um provérbio que diz que há duas formas de reconhecer um lituano: ou está a trabalhar arduamente, ou a sonhar acordado. E a índole do povo percebe-se bem na personalidade de Romas Leilikis. É um tipo alto e forte, inteligente e bem-disposto. Mas a sua excentricidade é reservada ou, se quisermos, interior. «Somos um povo que sofreu demasiadas atrocidades para exteriorizar as emoções», dir-nos-ia dias mais tarde Ugne Mielkute, uma jornalista de Kaunas. «Mas somos os mais sentimentais dos eslavos. Sofremos e exultamos em conjunto, simplesmente fazemo-lo em silêncio.»

Quem visita o centro de Vilnius apercebe-se imediatamente do caráter reservado da sua população. No castelo, que é bem capaz de ser o monumento mais emblemático do país, hordas de turistas – lituanos na maioria – sobem a torre de Gediminas no mais absoluto dos silêncios. Gediminas foi o arquiduque que, no século XIV, converteu o país ao cristianismo e criou uma das mais vastas nações europeias. A Lituânia existe desde 1009, mas uniu-se à Polónia em 1378 e expandiu-se por terras eslavas até século XVIII. Em 1798 passou a viver sob o jugo do império russo, do qual só viria a libertar-se em 1918, no final da Primeira Guerra Mundial. A independência durou até ao final da Segunda Guerra Mundial. Arrasado pela ocupação nazi, o país foi integrado na União Soviética e aí permaneceu até 1990.

«Somos um povo que sofreu demasiadas atrocidades para exteriorizar as emoções (…) Mas somos os mais sentimentais dos eslavos.»

Na cidade, é raro ouvir uma buzinadela no trânsito, se bem que uma boa parte dos habitantes de Vilnius se desloque nas bicicletas laranja de uso livre. Há imensas esplanadas, quase sempre cheias de gente, e quase sempre a beber grandes canecas de cerveja, a preços acessíveis. E, mesmo aí, as conversas decorrem em tom baixo. É como se uma nação inteira preferisse sussurrar em vez de conversar. Anos de tragédia, provavelmente. A única exceção é quando um grupo se reúne para assistir a um jogo de basquetebol, o desporto nacional. A identidade lituana orgulha-se de maneira muito óbvia da sua seleção, medalha de bronze da modalidade nos Jogos Olímpicos de 1992, 1996 e 2000.

Para realmente aproveitar os encantos lituanos é imprescindível fazer o que o povo faz nas férias: passar uns dias no lago. E a maioria das pessoas escolhe Druskininkai, uma estância termal de montanha, 130 quilómetros a sudoeste da capital. Jardins cheios de flores e fontes de água que se iluminam à noite. Spas em todos os hotéis e o maior parque aquático do país, com piscinas de água fria e quente, escorregas com vários níveis de dificuldade, bares dentro de água. Há gente de todas as idades, mas a multidão é essencialmente jovem. À noite, no centro, os mesmos que passaram os dias a banhos aperaltam-se para beber copos e dançar nas muitas discotecas e bares da cidade.

O clube mais conhecido chama-se precisamente Aqua. É uma garagem à qual se acede por uma escadaria escondida. Lá dentro, todo o glamour do Báltico. Se os restaurantes da região apostam invariavelmente em decorações tradicionais, de madeira e pedra, a vida noturna faz lembrar os espaços mais luxuosos de Nova Iorque. Jogos de espelhos, iluminação perfeita, DJ e VJ internacionais.

Clara Kaunas, que veio passar uns dias com os colegas de universidade a Drukininskay, diz que prefere o lago à praia. «A água do Báltico é muito fria», diz quase em tom de desculpa. Mas depois explica-se. «Nós gostamos da vida pacata, dos sítios calmos durante o dia. Todos os lituanos são assim, todos os lituanos preferem a simplicidade.» E à noite? «Bem, à noite libertamo-nos mais, sobretudo a minha geração. A personalidade lituana é muito prazerosa. De dia, o prazer das coisas simples, à noite o prazer da farra.»

Em 2011, as autoridades da cidade construíram também a Snow Arena, uma das maiores pistas artificiais de esqui do mundo. Com 640 metros de comprimento e várias pistas de treino, é utilizada sobretudo por famílias e grupos escolares. Vários instrutores garantem a aprendizagem e a segurança do espaço, mas haverá poucas coisas mais deslumbrantes do que visitar o bar de gelo do piso superior. Ali, tudo é água congelada: dos copos às cadeiras, das mesas aos candeeiros. É capaz de não ser má ideia, para quem quer visitar o espaço, levar um casaquinho.

Para aproveitar os encantos lituanos é imprescindível fazer o que o povo faz nas férias: passar uns dias no lago e numa estância termal.

Os lituanos são profundamente católicos, mercê da aliança com a Polónia, mas também se orgulham da sua tradição pagã. Foram o último povo da Europa a converter-se ao cristianismo, no final do século XIV e, ainda hoje as maiores festas do país têm raízes profanas. Nomeadamente as celebrações do solstício de verão, que tornam o país numa feira de tradições, encantos e mezinhas – onde quer que se pare.

O melhor sítio para avaliar a memória lituana é provavelmente Rumsiskes, um dos maiores parques etnográficos da Europa. Ocupa uma área de 175 hectares, pelas quais estão distribuídas quatro aldeias tradicionais, com as lojas, as habitações e as pessoas a envergarem a antiguidade lituana. Mulheres com saias compridas e camisas bordadas vendem flores, biscoitos e tecidos, enquanto os homens tomam conta do gado. Há lojas judias, em homenagem aos milhares que pereceram naquela mesma terra. Na segunda guerra mundial, Rumsiskes foi um campo de concentração nazi. A terra onde agora foi reerguida a tradição arquitetónica de uma nação é a mesma onde milhares de pessoas morreram.

Há inúmeras atividades para os visitantes e Olga vem-nos propor que nos juntemos a ela para fazer pão. Entra-se numa das casas e, na cozinha, o lume já arde. A mulher pega no centeio, junta-lhe água e licor, uns grãos de sal. É robusta quando amassa tudo em gestos firmes, repetitivos. «Vá, agora pegas e fazes uma bola grande.» A massa esponjosa e escura, diferente de todas as outras que tenhamos provado. Horas depois, com o pão já cozinho e partido sobre uma mesa comprida de madeira, haveremos de confirmar o sabor azedo, mas guloso do pão. «É como a história do país», diz a mulher numa gargalhada. «Tivemos demasiada amargura, mas amamos profundamente o nosso país.»

A uma centena de quilómetros dali, é possível atualizar a ideia visitando o parque de Grutas, a que os locais apelidam de Mundo de Estaline. É um jardim de esculturas soviéticas, resgatadas à destruição depois da independência do país. Há bustos, corpos inteiros ou apenas cabeças. Sobretudo de Estaline, Lenine e Karl Marx, mas também de homenagem aos trabalhadores, às mulheres, ao trabalho. Dificilmente se encontra no mundo um tamanho reservatório escultórico da arte socialista – o único comparável é o Parque Memento, nos arredores de Budapeste. Várias exposições mostram a propaganda do regime, mas também a sua violência (há uma secção arrepiante para perceber como funcionava um gulag). O facto mais curioso é que o parque foi criado por um antigo campeão de luta livre tornado empresário, Viliumas Malinauskas. Foi ele que negociou a recolha das estátuas, em vez da sua destruição. E essa ideia valeu–lhe a atribuição do Prémio Nobel da Paz em 2001.

Nenhuma visita à Lituânia fica completa sem uma ida a Trakai, uma pequena cidade a norte de Vilnius que acolhe um dos mais espetaculares castelos da Europa. Localizado numa ilha no centro de uma das duzentas lagoas que circundam a povoação, é um edifício incrivelmente bem restaurado, e que acolhe várias salas de exposição sobre as diferentes fases da vida dos lituanos, desde a fundação do reino. No verão, aos fins de semana, organizam-se torneios medievais, com cavaleiros e lutadores – e o povo rejubila como se de uma real competição se tratasse. A música é adequada à época, tocada ao vivo, e a ponte que dá acesso à fortaleza está tomada por casais de recém-casados, que vão ali fazer uma fotografia quase obrigatória de certificação dos votos.

Nas margens do lago estende-se uma linha de cafés e restaurantes, e as suas esplanadas parecem preferir os pufes e os sofás às mesas e cadeiras. O Sol põe-se, a multidão passeia-se, mas há um silêncio pausado, resfolegado até. Daina Augonis e Danielius Janulis estão a ver o céu pegar fogo e usam um iPod para dar banda sonora ao momento. Ela tem 35, ele 34, estão em lua-de-mel e usam, cada um, um phone na orelha. Brindam com um copo de gin tónico, não trocam uma palavra. Tínhamo-los conhecido no castelo, cumprimentamo-los e perguntamos-lhes o que estão a ouvir. Daina sorri e ergue o mostrador, a islandesa Bjork está a embalá-los com It’s Oh So Quiet. Confere.


Reportagem publicada na Volta ao Mundo edição 238 – agosto de 2014


Guia de viagem

Moeda: a moeda local é o litas, que equivale a 0,30 euros.
Clima: o verão é a melhor altura para visitar a Lituânia, não só porque as temperaturas atingem em média os 20 graus, como também pelos dias longos de sol. Em janeiro, em média, as temperaturas rondam os cinco graus negativos.

Onde ficar

VILNIUS
Hotel Ratonda
Um pequeno quatro estrelas com gestão familiar e perto dos principais pontos turísticos da cidade.
ratonda.centrumhotels.com

DRUSKININKAI
Grand Spa
Na capital termal do país o Grand Spa oferece quartos e apartamentos que servem bem quem viaja sozinho ou em grupo. Está dotado de piscina e um spa de alta qualidade.
grandspa.lt

TRAKAI
Hotel Margis
O hotel foi instalado numa península do lago Margis, pelo que a envolvência é estupenda.
margis.lt/en

Onde comer

VILNIUS
Restaurante Zemaiciai
É uma instituição de Vilnius e o mergulho mais direto que pode fazer na gastronomia do país. Há menus de degustação dos pratos lituanos e das bebidas nacionais, explicados pelo staff com grande rigor histórico. Fica nas caves de um edifício e a decoração lembra a idade medieval.
Rua Vokieciu 24

DRUSKININKAI
Forto Dvaras
É um edifício de madeira, de arquitetura tradicional, plantado nas margens de um lago em Druskininkai. Muito frequentado por famílias, é um bom lugar para experimentar a comida típica da região, muito à base de porco e batatas.
Rua Ciurlionio, 55
druskininkudvaras.lt

TRAKAI
Restaurante Kybynlar
Bem poderíamos pensar que estávamos na Turquia ou em Marrocos, mas este é um poiso verdadeiramente lituano. Em Trakai vive uma grande comunidade karaim, os turcos do Báltico. É o ideal para perceber a fusão entre duas escolas de cozinha: a do Médio Oriente e a do Báltico.
Rua Karaimu, 29
kybynlar.lt

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