Nunca tinha ouvido falar em Taiyuan, não sabia como se pronunciava. Nunca tinha ouvido falar dessa cidade com quase cinco milhões de habitantes, capital da província de Shanxi, nunca tinha ouvido falar dessa província.
As Festas do Barco do Dragão ocupam três feriados e, no último dia, um domingo, eu precisava de viajar entre Pingyao e Pequim. As multidões são um dos aspetos que impressionam a maioria dos estrangeiros que visitam a China. Os olhos enchem-se de gente de todas as idades, os ouvidos acostumam-se ao rugido permanente de centenas ou milhares de vozes misturadas. Nesse domingo de junho, os muitos comboios que faziam a ligação entre Pingyao e Pequim estavam lotados. Pesquisando pelas cidades das redondezas, apenas encontrei vaga num comboio noturno, de alta velocidade, que partia de Taiyuan. A única opção era viajar para essa cidade na véspera, passar lá a noite, passar também todo o domingo e sair para Pequim ao fim do dia, no único comboio com lugares disponíveis.
O hotel era estatal. Todos os trabalhadores do hotel eram funcionários públicos, fardados, a tentarem comunicar comigo com os tradutores do telemóvel, a chamarem o elevador ou a empurrarem carrinhos com produtos de limpeza. Puxei a mala ao longo do corredor, as portas abertas, gente a sair de uns quartos e a entrar noutros, famílias de várias gerações, panelas a ferverem sobre fogões ligados à tomada, o cheiro da comida a misturar-se com o perfume do detergente para alcatifas. Entro no meu quarto, jornal do partido sobre a secretária, fotografias de reuniões imensas, assembleias de dirigentes simétricos, muito direitos, alinhados e penteados. Afasto a cortina e fico diante da janela. Lá em baixo, trânsito expedito de motoretas elétricas, silenciosas, pessoas que não dão pela minha presença, que não a imaginam, vidas que desconheço, que não imagino.
Quem esteve aqui há dez anos ou mais não esteve aqui, esteve num lugar completamente diferente.
Da mesma janela, no dia seguinte, assisti à neblina, a manhã de domingo atravessada por famílias, gente que agora, enquanto estas palavras estão a ser escritas e lidas, ainda está em Taiyuan. O presente da China parece mais fugaz do que qualquer outro. A mudança de tudo, boa ou má, é constante, imparável, avassaladora. Quem esteve aqui há dez anos ou mais não esteve aqui, esteve num lugar completamente diferente. Por isso, independentemente das dinastias Qin, Han, Jin, Sui, Tang, Song, Yuan, Ming, Qing, preferi nesse dia caminhar pelas ruas de Taiyuan, entre quem celebrava o último dia da Festa do Barco do Dragão: crianças e jovens que, daqui a alguns anos, recordarão este tempo como um passado remoto, nostálgicas por telemóveis que, hoje, consideramos avançadíssimos.
Caminhei durante horas sem me cruzar com qualquer ocidental. Avancei por enormes avenidas, por jardins, praças, por vielas emaranhadas dessa cidade de que nunca tinha ouvido falar e que existe, é absolutamente real. Sorri para pessoas que se surpreenderam comigo, que me sorriram também, que quiseram tirar fotografias comigo. E comprei uns sapatos, os mesmos que tenho agora calçados.
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Crónica publicada na edição de julho de 2019 da revista Volta ao Mundo (número 297)
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