O imaginado e o real, o dos povoados mágicos e o dos hóteis-boutique de luxo, o das ruínas maias e o dos rios subterrâneos. Viajámos por Quintana Roo e Iucatão, dois estados de espírito. E de facto.

Texto de Ricardo Santos

No México da televisão e dos filmes, o ator Joaquim de Almeida passa por traficante de droga nativo, os mexicanos vivem todos em aldeias poeirentas, trabalham no campo, comem comida picante, bebem tequila e sonham sempre com passar a fronteira para os EUA e ter uma vida digna.

No México da vida real, quase todas as famílias têm alguém fora do país, o turismo e a história são armas contra a pobreza e contra a violência, a herança dos maias ainda é comemorada e a endinheirada tribo hippie chic já tomou conta de alguns dos locais mais bonitos do país. A preços pouco condizentes com a filosofia de paz e de igualdade.

Tulum, no estado de Quintana Roo, é exemplo dessa discrepância, mas até a cidade reconhecida pelas ruínas arqueológicas dos maias tem duas caras: uma feita para os turistas e outra para quem lá vive e trabalha. Será em Tulum o fim da nossa viagem pela península do Iucatão, mas já lá chegamos.

Acabámos de entrar no México pela fronteira com o Belize. Estamos a terminar o circuito Ao Encontro dos Maias, com a The Wanderlust, agência de viagens com várias aventuras no portfólio (ver guia) e com uma líder no terreno que faz a ligação direta à realidade local. E é com ela, Liliana Ascensão, que damos os primeiros passos pela desconhecida Bacalar, no estado de Quintana Roo, 215 quilómetros a sul de Tulum, 275 a sul de Playa del Carmen, dois dos pontos mais badalados e turísticos do país.

Bacalar faz parte da lista do programa Pueblos Mágicos, iniciativa do governo mexicano iniciada em 2001. A ideia foi promover um conjunto de localidades conhecidas pelas suas ofertas de beleza natural, tradição, cultura, história, gastronomia, arte e hospitalidade. Foi uma forma de mostrar ao mundo – e aos mexicanos – que o turismo interno pode ser muito mais do que sol, praia e festas de universitários norte-americanos na pausa da primavera. Nove anos depois do lançamento eram 32 as localidades selecionadas. Em 2012 o número chegou a 83 e hoje já ultrapassa as cem. Bacalar entrou para a lista em 2006 e é a única localidade do estado de Quintana Roo a fazer parte do rol. Foi fundada, crê-se, entre os anos 415 e 435 como cidade maia de SyianCaan Bakhalal, «lugar onde nasce o céu», numa tradução livre para português. Outra hipótese de tradução é «lugar rodeado de juncos». Ambas fazem sentido quando se está aqui. A primeira opção é só mais literária.

Quando, quase 1500 anos depois da fundação, os espanhóis conquistaram o Iucatão, a cidade passou a ser mencionada como Villa de Salamanca de Bacalar e assim seguiu o seu caminho, visitada constantemente por piratas ingleses em busca de água doce e abrigo. Em 1652 acabaram por destruí-la. A defesa da cidade foi assegurada pelo Forte de São Filipe, um dos locais mais visitados de Bacalar, hoje com cerca de dez mil habitantes e um ritmo tranquilo de lugar pequeno onde todos se conhecem.

Bacalar é um dos pueblos mágicos do México, locais com interesse social, cultural e histórico de um país com surpresas em cada canto. Nos estados de Quintana Roo e Iucatão fomos da praia à selva, do tradicional ao luxuoso.

No jardim em frente ao forte, na praça principal, uma maqueta deste Pueblo Mágico mostra-nos as ruas traçadas em esquadria e a proximidade à estrela da companhia – a Lagoa das Sete Cores. Está mesmo ali, ao alcance de um passeio de barco. São 40 quilómetros de extensão por dois de largura, tudo água doce com cor de Caraíbas, o grande diferencial deste espelho de água. A explicação da tonalidade vem do fundo de calcário e das diversas correntes subterrâneas, mas há que agradecer também ao sol. É que ao meio-dia de um dia sem nuvens, a lagoa de Bacalar transforma-se num manto verde, azul, turquesa. Por esta altura já estamos a bordo de um pequeno veleiro incluído no programa da viagem. Há várias opções de aluguer, de veleiros a lanchas, passando por caiaques. Basta percorrer as margens da lagoa ou escolher algum dos clubes náuticos das redondezas. Seguimos velejando, a caminho do canal dos Piratas. Ancoramos ao largo de uma antiga ruína em cimento, um velho bar-restaurante que acabou engolido pelas águas depois de o projeto ter sido considerado ilegal pelas autoridades. O que resta da estrutura serve de prancha de saltos ou de cenário para fotografias no Instagram. Entre os graffiti e o tom da água, venha o melhor filtro e escolha. Nadamos até lá e não passa a sensação de se poder estar nas Caraíbas. Só a falta de sal volta a fazer cair a ficha: isto não é mar. Mas parece mesmo.

Há quem aproveite para banhos de lama ou simplesmente para ficar ali, deitado em água pelo joelho. Com o avançar da hora de almoço chegam mais embarcações para deixar turistas. Não é ainda uma pressão massiva, mas Bacalar está a transformar-se. De um segredo bem guardado para uma atração nacional foi um pequeno passo. E já há quem se manifeste contra a política de desenvolvimento, como o jornalista maia Pedro Canché, que passou nove meses preso por ter criticado um antigo governador do estado de Quintana Roo. O que Caché defende é que a destruição da lagoa pode estar iminente devido à expulsão da região dos habitantes nativos e ao excessivo poder dado às explorações agrícolas que estão a trocar a floresta pela aposta no óleo de palma, soja e biodiesel. E no seguimento chegam as suspeitas de corrupção, especulação imobiliária e construção desenfreada. Enquanto não se confirma o pior cenário – e enquanto a lagoa não ganha o estatuto de reserva natural – voltamos a Bacalar graças à força do vento. Ou, pelo menos, era essa a ideia. Sem vento, há que esperar ou remar. E entre esperas e remadelas, lá nos aproximamos dos cenotes. Em primeiro lugar, um cenote é uma cavidade natural, como um algar. Faz a ligação entre a superfície e as áreas alagadas subterrâneas. É típico desta área do México e estes locais foram usados em alguns rituais de sacrifício dos maias, mantendo ainda hoje uma aura de mistério. Como é o caso dos cenotes da Bruxa. Ou o Azul, o Cocalitos ou o Esmeralda, os mais procurados da lagoa de Bacalar para nadar, mergulhar ou fazer snorkeling. Não é só a combinação de águas a diferentes temperaturas, não é só a mudança brusca de profundidade e de cor. É, como nos conta Liliana naquele fim de tarde em Bacalar, «como se fosse uma passagem entre dois mundos».

Os cenotes, esses locais mágicos onde águas subterrâneas se misturam com histórias de civilizações antigas. [Imagem: iStock]

O vento não ajudou, mas os remos e a boa disposição trouxeram-nos a terra, de regresso ao Pueblo Mágico e ao Playita, restaurante, bar, clube de praia – o que preferirem – onde o fim de tarde já se tornou uma regra. O pôr do Sol por aqui é um produto de primeira necessidade. Enquanto não chega o momento, há tempo para ir até à estrada principal e descobrir umas bolachas de queijo especiais. Feitas pela mãe, vendidas pelo filho, ambos menonitas, pertencentes a uma comunidade que vive na cidade de Salamanca. Há cerca de cem mil menonitas a viver no México (mais de dois milhões em todo o mundo), quase sempre identificados como Amish. Chegaram ao país na década de 1920, vindos do Canadá, e mantêm o mesmo estilo de vida, recusando a eletricidade e a tecnologia, adotando uma rígida disciplina e só mantendo contacto com não menonitas em virtude das trocas comerciais. É o que tento fazer com esta dupla. A mãe não me responde, só o miúdo alimenta a comunicação. Compro meia dúzia de bolachas por 30 pesos, qualquer coisa como euro e meio. Em menos de cinco minutos, o rapaz vai usar esse dinheiro para comprar gomas. Amoras e imitações adocicadas de bananas que vai dividir com a mãe num festim de açúcar à beira do asfalto. E o sol vai caindo. Junto à lagoa e na pracinha de Bacalar onde a música ao vivo se vai fazer ouvir até bem perto da meia-noite.

A Tulum à beira-mar é bem diferente da cidade à beira da estrada. Lojas, bares e comida de rua são alternativas à oferta saudável e a preços elevados dos locais mais badalados.

Na manhã seguinte continuamos viagem para Tulum. Duas horas e meia num autocarro tão confortável quanto frio. Tome nota deste pormenor: viajar na América Central de autocarro moderninho (como os da empresa ADO) é sinónimo de ar condicionado o mais próximo possível de uma frente polar. Aconselha-se a compra de uma manta ou andar sempre com o saco-cama por perto. Felizmente o percurso é curto e chegamos a tempo de aceder ao sítio arqueológico de Tulum – última entrada permitida às 16h30. Aberto todos os dias das 08h00 às 17h00, com o valor da entrada a rondar os três euros por pessoa (70 pesos), exceto ao domingo, quando o acesso é gratuito.

O sítio está a 15 minutos de carro do centro da cidade. Há táxis, autocarros e carrinhas de transporte público para os interessados. E bicicletas para quem ousar enfrentar o calor. Qualquer que seja a opção para visitar esta antiga cidade muralhada, erguida no século vi e que atingiu o auge entre o XIII e o XV, há que não esquecer cinco itens de uma importância crucial. Seis, vá – chapéu, garrafa de água, protetor solar, repelente de mosquitos, fato de banho e um dispositivo que fotografe esta visão única do que resta do império maia na falésia da Playa Paradiso, uma das praias mais bonitas do mundo.

Tulum significa «fosso» ou «parede». Era por aqui que passavam algumas das rotas terrestres e marítimas mais importantes do império. Ainda aqui vivia gente quando os espanhóis chegaram, mas durante o século XVI a cidade foi abandonada. Quinhentos anos depois, recebe cerca de 2,5 milhões de visitantes por ano. E a grande maioria destes não resiste a um mergulho nas águas quentes. Fora do complexo arqueológico, ainda na praia, há bares e restaurantes preparados para o turismo e para festas ao pôr do Sol. Seguindo pelo areal, a praia vai perdendo gente e ganhando estruturas definitivas que albergam alguns dos hotéis-boutique mais exclusivos do país. Entre 200 e 700 euros por noite, o luxo é assumido. Sempre frente ao mar, com tratamentos holísticos, gastronomia biológica, Nouvelle Vague (ou afins) a tocar na coluna sem fios e o sorriso constante de funcionários com extremo bom ar. Esta é a Tulum hippie chic.

A outra, a verdadeira, começa a quatro quilómetros da praia, onde chegam os autocarros. Atravessa-se a estrada nacional que liga os vários pontos da Riviera Maia. Há lojas de conveniência e de souvenirs, bares de mezcal e de karaoke, restaurantes de tacos e de churrasco. Há um bar/discoteca que funciona ao lado da estação da Polícia. Ao primeiro acorde percebe-se que há uma boa política de vizinhança entre ambos os estabelecimentos. Entramos e pedimos uma mesa. Tal como nos filmes, só aqui falta o líder do cartel. Há homens embriagados com cicatrizes bem visíveis, profissionais do sexo em busca de clientes, travestis que dançam com vaqueiros, seguranças com arma no coldre, uma bola de espelhos que não para de girar, corridos e narcocorridos, as baladas tradicionais e as dedicadas a bandidos infames, que não param de tocar. E há uma simpatia genuína para receber quem chega, desde que não venha para ridicularizar o que se passa neste espaço de néons, luzes negras, bebidas baratas e livre de gringos.

O legado dos maias em Chichén Itzá, uma lagoa mágica em Bacalar, noites de música tradicional em Tulum, a energia mística dos cenotes em toda a península. E viva o México!

Ressaca curada, a manhã que se segue é tranquila e de viagem até Chichén Itzá, já no estado do Iucatão, com hora diferente e tudo. São 150 quilómetros de distância que podem ser percorridos em cerca de duas horas, com paragem (à volta, de preferência) em algum dos cenotes da região, para mergulho e lazer, e na cidade colonial de Valladolid para almoço. Chegamos cedo à antiga cidade maia, polo importante entre os anos 600 e 1200. A abertura de portas é às 08h00 e convém apontar para essa hora, já que quando o calor aperta fica mais difícil caminhar pelo complexo. Os itens a levar para Tulum podem ser replicados aqui, com destaque para a água e para o chapéu. Já o custo da entrada é diferente, vai aos 11 euros por pessoa. E vale tanto a pena.

Não é só a imponente pirâmide Kukulcán e o efeito sonoro das palmas batidas ali por perto. Não é só o enorme campo de pok-ta-pok, o jogo da bola mesoamericano com mais de três mil anos. Não é apenas o edifício El Caracol, observatório astronómico muito à frente do seu tempo. Não são unicamente os cenotes escondidos na selva de onde não apetece sair. Não é somente a energia quase cósmica que se sente em lugares especiais. É um México de duas faces, que tanto pode ser superficial como profundo, tradicional e moderno, caro e barato, a cores e a preto e branco, mas que nunca desilude. Em especial quando se tem a sorte de viajar com gente que sabe estar. E viver.


Guia de viagem

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A The Wanderlust idealizou um pacote de viagem de duas semanas através de Guatemala, Belize e México – Ao Encontro dos Maias. Tem um custo de 1500 euros por pessoa e tem início na Cidade da Guatemala, terminando em Tulum, México. Não inclui voos (de Lisboa rondam os 700 euros por pessoa ida e volta).

Inclui: 13 noites de alojamento em hostel, hotel, eco-hotel e autocarro. Transportes: shuttle bus, autocarro e barco; onze refeições: dez pequenos-almoços e um jantar. Todas as atividades mencionadas no programa. Guia local em Chichén Itzá e Tikal; Seguro de viagem nas datas do programa. Acompanhamento e orientação durante toda a viagem a cargo de Liliana Ascensão.

Não inclui: despesas de carácter pessoal, gorjetas e atividades suplementares.

Próximas datas
15 a 28 de fevereiro de 2020;
28 de novembro a 11 de dezembro de 2020.

Itinerário completo
Dia 1
Chegada a Antigua, Guatemala.
Dia 2
Guatemala, lago Atitlán e visita às aldeias em redor.
Dia 3
Lago Atitlán, descoberta de projetos locais.
Dia 4
Regresso a Antigua e visita ao centro histórico.
Dia 5
Subida aos vulcões Pacaya e Acatenango (este, opcional).
Dia 6
Antigua e viagem em autocarro noturno para o lago Petén Itzá.
Dia 7
Visita às ruínas maias de Tikal, ainda na Guatemala.
Dia 8
Viagem para o Belize, ilha de Caye Caulker.
Dia 9
Snorkeling, mergulho, praia e diversão em Caye Caulker.
Dia 10
Viagem para Bacalar, México.
Dia 11
Visita à lagoa das Sete Cores em Bacalar, mergulho em cenote.
Dia 12
Viagem para Tulum, México, e visita às ruínas. Tarde de praia.
Dia 13
Visita às ruínas de Chichén Itzá e à cidade de Valladolid. Mergulho e cenotes.
Dia 14
Regresso a casa.

Dormir
Hotel Casa Lima
Numa rua sossegada da cidade, pousada familiar a curta distância dos principais pontos de interesse. Quartos com boas áreas, zonas comuns convidativas e boa rede de wifi.
Calle 20, entre avenidas 5 e 7 Bacalar
Facebook.com/casalimabacalar

Hotel Casa Xanath
Hotel familiar a curta distância do terminal de autocarros de Tulum e bem perto da zona de restauração e de diversão noturna. Para chegar à praia são 4,5 km a pedalar ou em táxi. Ruínas e praia ficam a cerca de cinco quilómetros. Piscina interior, quartos amplos.
Calle 20, entre avenidas 5 e 7 Bacalar
Facebook.com/casalimabacalar

Mais informações:
thewanderlust.pt

 

 


Reportagem publicada na edição de setembro de 2019 da revista Volta ao Mundo (número 299).


Veja também:
Ao Encontro dos Maias: uma viagem difícil de esquecer pela América Central
Tulum: o paraíso é no México

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