Visitar uma ilha sem ceder ao capricho de dar um mergulho. Ou mergulhar na história e na arquitetura de um chão ancestral com lendas e povos de outros tempos.
Texto Maria João Veloso
Fotografias Direitos Reservados
Debaixo de um manto de nuvens, que nos molhará os pés umas horas mais tarde, Tenerife – a maior ilha do arquipélago das Canárias – apresenta-se tão selvagem como a paisagem de Lost – série de culto pré-Netflix – que nos agarrou à televisão na primeira década do século XXI.
Já em terra firme, Tenerife não se parece nada com a ilha de Lost, a não ser o simples facto de ser uma ilha. Conhecida pelo clima ameno, a rondar os 23 graus de temperatura média anual, somos recebidos por uma tempestade tropical, própria deste conjunto de ilhas situadas no oceano Atlântico, ligeiramente a norte do trópico de Câncer. Estão criadas as condições para trocarmos aquele mergulho em água cálida por uma visita a San Cristóbal de La Laguna, primeira capital da ilha. Abrigamo-nos da chuva na Casa Lercaro, onde fica o Museu de História. De traço senhorial, a casa de uns antigos mercadores genoveses é uma viagem no tempo. Reza a lenda que Catalina, filha dos proprietários, se matou, e até hoje as suas passadas assustam os guardas do museu. É ali que aprendemos a primeira lição sobre os primeiros vestígios de vida humana no arquipélago. Segundo Javier Chirivella Costa, o guia que nos acompanha, quando em 1402 os normandos se estabeleceram na ilha encontraram os guanches, que se distribuíam em nove reinos e viviam de forma primitiva, como no período neolítico.
Inicialmente pensou-se que esta tribo era nativa das Canárias, mas nos últimos anos «vários historiadores têm defendido serem tribos berberes vindas do norte de África». Estas e outras histórias podem ser aprofundadas nesta casa do fim do século XVI no centro histórico da cidade, inscrita na UNESCO desde 1999. A ilha foi definitivamente conquistada aos guanches por Alonso Fernández de Lugo, que fundaria a cidade em 1496.
Depois da conquista espanhola a cidade surge como uma urbe planificada – que contrasta com o modelo medieval até então praticado –, com ruas amplas e direitas, à moda renascentista. Este modelo seria usado e abusado pelo império espanhol em várias cidades da América Latina como Havana, em Cuba, ou Cartagena das Índias, na Colômbia. A atmosfera colonial mantém-se com as casas apalaçadas de cores garridas com varandas de madeira de pinheiro autóctone. Não fossem as lojas de marcas internacionais que alternam com estabelecimentos de comércio local e imaginávamos estar dentro de um romance de Gabriel García Márquez. Mas não, apesar de já não exibir o título de capital, La Laguna é uma cidade cosmopolita e universitária com lojas tão fora da caixa como a Sapataria Pisaverde, com calçado artesanal e sustentável, onde não há dois pares de sapatos iguais.
Irresistível será adivinhar a que século pertencem os palacetes que ladeiam as ruas do centro. Todos os que têm janelas e portas desirmanadas pertencem aos séculos XVI e XVII, enquanto os que exibem fachadas «feitas a régua e esquadro» são neoclássicos e datam dos séculos XVIII e XIX. Neste circuito encontram-se ainda vários bares e restaurantes. Destaque para a Tasca El Obispado, onde descobrimos o improvável almogrote – um paté nativo da ilha vizinha de La Gomera, feito à base de queijo de cabra duro, massa de pimentão e alho. Aperitivo ideal para uma degustação de queijo de cabra com vários tipos de cura, todos made in Tenerife. Acompanha o vinho local. Os olhos também comem a colorida salada canária onde se destaca o cherne e o milho tostado. O repasto termina em beleza com flã de iogurte com caviar de mel de palma.
O passeio por Santa Cruz de Tenerife, capital da ilha desde o século XIX, começa no Parque García Sanabria, um dos lugares mais verdes da cidade, onde se podem apreciar espécies diversas de plantas ao longo dos seus sete hectares. A mais invulgar é um cato em forma de pufe com o sugestivo nome de «assento de sogra», parentesco que já terá tido melhores dias em terras canárias.
Com condições climatéricas mais favoráveis, passeamos pelas ramblas de Santa Cruz, as mais largas do território espanhol a seguir a Barcelona. Nelas encontramos uma profusão de lojinhas e boutiques que se distinguem pela criatividade e o bom gosto, como The Concept Boutique & Coffee, com roupa a atirar para o vintage e um café com direito a brunch ao domingo. Uma mescla entre o antigo e o moderno onde ainda se encontra uma antiga mercería: um estabelecimento colorido com carrinhos de linhas de todos os tamanhos possíveis e imagináveis. Seguimos as instruções no cartaz da porta e sorrimos antes de entrar no Bar Charcutería La Garriga para picar um manchego ou um queijo de cabra acompanhado de uma caña (imperial). Quem gosta do petisco não vai resistir ao balcão onde estão arrumadas desde conservas de azeitonas aos afamados molhos canários: o verde e o picón. Numa barra de ferro junto ao teto sobrevoam avantajadas pernas de presunto prontas a ser consumidas ou para levar, debaixo do braço, para casa. Com um dragoeiro como pano de fundo encontramos a Praça do Chicharro. Uma escultura de homenagem aos chicharreros – pescadores de chicharro – que se tornou o símbolo alegórico da cidade.
A atmosfera colonial de La Laguna mantém-se com as casas apalaçadas de cores garridas e varandas de madeira de pinheiro autóctone.
A caminho da Casa do Carnaval passamos pela Praça do Príncipe, situada na antiga horta do convento da Igreja de São Francisco. Em frente ao Museu de Belas-Artes, a igreja é um belíssimo exemplar barroco, a começar pela porta da fachada. Depois de uma paragem sagrada vamos ao encontro do profano. O Carnaval é um assunto sério por estas bandas, e recebe o título de segundo maior do mundo, a seguir ao do Rio de Janeiro, no Brasil. Num colorido sem fim, na Casa do Carnaval pode encontrar-se documentação, cartazes e histórias variadas sobre a festividade, como o nascimento, em 1965, do primeiro grupo de comparsas (grupos musicais). Chamavam-se Los Rumberos e nasceram no Mercado de Nossa Senhora de África pela mão de Manuel Monzón. Um grupo de comerciantes disfarçados resolveu sair à rua a cantar e a dançar. A ditadura de Franco terá proibido que se celebrasse o Carnaval, mas este nunca deixou de se realizar, com o nome de Fiestas de Inverno. Eleita antes do Carnaval, ser rainha não é tarefa para todas. Os toucados que levam à cabeça pesam entre 170 e 250 quilos.
Igualmente colorido e mais substancial é o Mercado de Nossa Senhora de África, lugar de excelência para levar recuerdos para casa, sobretudo comestíveis. É na Charcutaria Roque que encontramos o almogrote caseiro, que nos surpreendeu no primeiro dia, e os típicos queijos de cabra que entalaremos na bagagem no dia de voltar para casa. Na cave a montra da Marisqueria Nicomedes também é digna de apontamento, mas terá de ficar para outras núpcias, já que uma mesa nos espera na centenária casa de comidas La Hierbita, de portas abertas desde 1893. Com salinhas, saletas e uma decoração rústica, provamos receitas da abuelita canária como garbanzas canarias (grão guisado) ou a beringela com mel de palma.
Destino turístico desde o século XIX, Puerto de La Cruz é uma estância balnear com oferta hoteleira para todas as bolsas. Não é de estranhar que pela marginal tanto se veja velhinhos de mãos dadas que parecem saídos do filme Cocoon, como casais a praticar aquela viagem da praxe chamada lua-de-mel. As lojas de recordações são mais que muitas e vendem desde as típicas sweatshirts I Love Tenerife a árvores embaladas para trazer para casa, com o dragoeiro na linha da frente. Mas as suas atrações não são apenas bagatelas. A Costa Martiánez, pensada por César Manrique, ativista e arquiteto nascido em Lanzarote, conhecido por integrar a obra na natureza, vale a viagem com as suas piscinas artificiais de água do mar em sintonia perfeita com a paisagem. Na esplanada do Hotel Marquesa um grupo de músicos diverte quem passa. Mais uma vez as semelhanças com a arquitetura latino-americana nos confunde e aqueles homens de voz rouca podiam ser réplicas de Compay Segundo. Jantar na Casa Régulo é como entrar numa casona típica canária. Um negócio familiar gerido por Marta e por Jesús Manuel, irmão de Régulo, que batizou o restaurante. As gambas fritas à moda da casa e o pastel de salmão fumado acompanhado pelo afamado vinho de Orotava são de chorar por mais.
Até aos anos 1950, pastores e apicultores fizeram do Teide a sua casa. Era dali que saíam os melhores mel e queijos de cabra de Tenerife.
Até meados da década de 1950, pastores e apicultores fizeram do vulcão do Teide e respetivas imediações a sua casa. Era dali que saíam os melhores mel e queijos de cabra de Tenerife. A partir de 1954 a área foi declarada parque nacional, tornando-se um dos maiores em território espanhol, e foi proibida a exploração agrícola. A biografia deste lugar, no entanto, cuja paisagem parece de outro planeta, tem cerca de três milhões de anos, quando um vulcão entrou em erupção e cavou uma caldeira de 10 a 16 quilómetros de diâmetro. Segundo o povo guanche era ali, nas profundezas da terra, que vivia Guayota, o deus do mal a quem esta tribo culpava pela lava e o fogo que brotavam da terra.
É na videoteca do Centro de Visitantes El Portillo – que fica numa das entradas do parque – que conhecemos o «demoníaco» Guayota, que, numa versão mais pedagógica, explica a formação da caldeira sobre a qual se eleva o complexo vulcânico do Teide. Mas a paisagem árida, a atirar para o lunar, empurra-nos para a rua. Não muito longe do Parador Las Cañadas del Teide encontramos pedra-pomes nas Minas de San Jose. Este pode ser o ponto de partida para explorar o parque. Destaque para o Roque Cinchado, uma rocha em forma de tornado que integra um conjunto de pedras de formas singulares que receberam o nome de
Los Roques García. Considerado desde 2007, pela UNESCO, Património da Humanidade, percebe-se a razão pela qual o parque atrai mais de três milhões de visitantes ao longo do ano. E se a paisagem é esmagadora, quando olhamos este imponente vulcão convém saber que se trata do terceiro maior do mundo, que ilustrou durante muitos anos as notas de mil pesetas e que está 3718 metros acima do nível do mar.
Para renovar energias nada com um puchero canário no restaurante Parador. É a especialidade da casa e apresenta-se num colorido cozido com várias carnes e enchidos e acompanhado com legumes locais. Na subida ao parque através da estrada TF-24, que liga Laguna a Portillo, impõem-se paragens estratégicas nos miradouros de Chimague, Chipeque e La Tarta II. Este último com vista privilegiada para o cume do Teide – normalmente nevado entre novembro e abril – e rodeado por um mar de nuvens durantea maior parte do ano devido a ventos alísios produzidos pelo anticiclone dos Açores.
Dragoeiros centenários e casas senhoriais multicolores podem ainda admirar-se em Orotava, uma das cidades mais antigas e também mais bem preservadas de Tenerife. A Casa de Los Balcones tem um luxuriante pátio de palmeiras e ainda uma loja de produtos locais com destaque para a areia vulcânica usada para compor os tapetes da festa do Corpo de Deus, uma das principais festividades religiosas do arquipélago. Se o céu é o limite, o turismo astronómico é outra possibilidade na ilha. A qualidade do céu do arquipélago está protegida por lei há trinta anos e é conhecida pela transparência. O Instituto de Astrofísica das Canárias (IAC) pertence ao European Northern Observatory. Em Tenerife é possível visitar o maior observatório solar do mundo, fundado em 1959, ou fazer um passeio minucioso ao céu noturno. O programa inclui jantar com pratos típicos canários e vinhos locais. O palco é o parque do Teide e o desafio mergulhar no céu.
Guia de viagem
Viajar
Documentos: Cartão de cidadão ou passaporte
Moeda: Euro
Fuso horário: GMT+0
Idioma: castelhano
Como ir
A Binter voa de Lisboa para Tenerife às quintas-feiras e domingos. Voos desde de 198 euros (não inclui taxas).
Dormir
Hotel Botanico & Oriental Spa Garden
Galardoado com o prémio Holiday Check Award 2019, este hotel de luxo de inspiração oriental situado em Puerto de La Cruz conta com a maior coleção privada de pintura canária. Por lá já pernoitaram personalidades como Bill Clinton, cuja passagem deu nome à suite principal. Mas também ícones pop e da sétima arte como Michael Jackson ou Sylvester Stallone. Fã da filosofia de vida tailandesa, Wolfang Kiessling, o proprietário, imprimiu nos 252 quartos deste hotel uma linha decorativa de tons quentes e exóticos com vistas incríveis para o oceano Atlântico ou para o Parque Nacional El Teide. O spa é considerado o melhor do mundo pela Condé Nast Traveller há cinco anos consecutivos. O mármore do hotel é de origem portuguesa. Em algumas suites mais afortunadas habitam elefantes de peluche porque se crê serem amuletos da sorte.
Preço: Desde 180 euros/noite
Web: hotelbotanico.com
Visitar
Auditório de Tenerife Adán Martín
Envolto pelo oceano Atlântico, o Auditório de Tenerife no coração da capital, destaca-se pela forma e o traço de vanguarda. Assinada pelo arquiteto espanhol Santiago Calatrava, esta sala de espetáculos tem uma programação que abarca vários estilos musicais. Da ópera ao rock. Todas as segundas-feiras e sábados realizam-se visitas guiadas que podem ser agendadas através do email: [email protected].
Web: auditoriodetenerife.com
Gua gua ou coche?
Tal como em Cuba, no arquipélago das Canárias os autocarros respondem pelo nome de gua gua. Reza a história que esta expressão nasce do nome da companhia norte-americana Wa & Wa Co. Inc. (Washington, Walton and Company Incorporated) que foi a primeira empresa a exportar autocarros para as ilhas. Para ter autonomia suprema, recomenda-se que alugue um carro para fazer o seu próprio itinerário.
Tea
Desenhado pela dupla de arquitetos Herzog & De Meuron no Tenerife Espacio de Las Artes mora o museu de arte contemporânea, o centro de fotografia e a biblioteca municipal. Além da coleção permanente, as exposições temporárias merecem atenção. A loja do museu é de visita obrigatória.
Web: teatenerife.es
Comer
Tasca Obispado
La Laguna
Web: tascaobispado.com
La Hierbita
Santa Cruz de Tenerife
Web: lahierbita.com
Restaurante Régulo
Puerto de la Cruz Calle Pérez Zamora, 16
Tel.: +34 922 38 45 06
Agradecimentos
A Volta ao Mundo viajou a convite do Turismo de Espanha e da Binter Canarias.
Reportagem publicada originalmente na edição de setembro de 2019 da revista Volta ao Mundo, número 299.
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