Património, gastronomia, história e natureza numa viagem a dois à beira do mar Tirreno.

Texto e fotografias de Rafael Estefania

Do alto dos seus quinze metros de altura, um jovem e atraente São Genaro, patrono de Nápoles, olha-nos mais ao jeito de um catálogo de moda do que de uma obra religiosa. É a obra do artista urbano Jorit, um criador que, a golpe de murais gigantes e hiper-realistas (também é seu o mural do outro «santo» de Nápoles, Maradona) colocou a arte moderna nas ruas de uma cidade ancorada ao passado.

Assim é Nápoles, apegada à sua história e à sua tradição, mas também ao caos e à sujidade, como se os seus vícios e virtudes fossem as duas caras de uma mesma moeda. Quem sabe, graças a isso, ainda é possível deambular pela sua espetacular monumentalidade sem ter de lutar com hordas de turistas ávidos de selfies e almoçar em trattorie onde os simples pratos são comidos em vez de fotografados. Algo digno de ser celebrado e nenhum lugar melhor para isso do que na confeitaria Pintauro, tendo como pequeno-almoço uma sfogliatella, delicada concha de massa folhada recheada de ricotta, servida quente neste local desde 1785. E por ali também estão os palácios, com o seu ar deliciosamente decadente, os museus repletos de tesouros, as avenidas monumentais apesar do lixo nas calçadas, o barroco absoluto do Teatro San Carlo, a arrogância dos seus castelos, o mistério das catacumbas e passagens subterrâneas e o majestoso Vesúvio ao fundo vigiando tudo.

Nápoles é o ponto de partida para esta viagem até à Costa Amalfitana, onde nos espera um percurso de 50 quilómetros pelo litoral sul da península sorrentina, na região da Campânia.

Ficaria muito mais tempo aqui, alimentando-me de pizas tão simples quanto deliciosas, com tomate, mozzarella e manjericão como únicos ingredientes, mas nesta ocasião Nápoles não é o destino, mas a porta de entrada para outra viagem rumo à Costa Amalfitana. Para esta road trip, escolho um Fiat 500. Para lá da nostalgia, há razões práticas para escolher o mais evocativo e pequeno dos carros italianos. Pela frente espera-me a famosa estrada SS163 de Sorrento a Salerno, abraçando falésias com quarenta metros de altura, sinuosa e estreita, sem espaço para um veículo, mas partilhada com centenas de carros e autocarros. Infelizmente, essa saturação de veículos, inclusivamente fora de época, faz que os 43 quilómetros do meu ansiado passeio romântico por uma das estradas costeiras mais belas do planeta se converta num grande engarrafamento com vista.

Decido passar a noite em Sorrento e tornar esta cidade na base de operações para explorar por mar os povoados da costa. Localidades como Positano, apegadas de forma impossível à montanha, construída em plano vertical em vez de horizontal, como o resto das localidades do mundo e salpicada de casas coloridas e igrejas com cúpulas douradas. Lugar mágico que inspirou Patricia Highsmith a escrever O Talentoso Senhor Ripley, levado ao cinema com Jude Law encarnando o perfeito hedonista italiano. Uma aldeia de conto de fadas que encantou músicos e intelectuais e que hoje seduz milhares de instagrammers. O seu encanto está acima de qualquer dúvida, mas a sua magia desvanece-se um pouco com cada autocarro e cada barco carregado de turistas que atracam no porto. Somente ao cair da tarde, quando parte o último, Positano começa a respirar mais facilmente, como um afogado que recupera o ar.

Positano, uma aldeia de conto de fadas, um lugar mágico que encantou músicos e intelectuais e que hoje seduz milhares de instagrammers.

Sinto que o encanto da Costa Amalfitana já não está aqui, nem tão-pouco em Amalfi, onde as lojas de souvenirs e os restaurantes turísticos substituíram há muito o comércio local e as trattorie de bairro. Um pouco mais à frente está Atrani, a localidade mais pequena de Itália, mas com a maior quantidade de igrejas, mosteiros e capelas por metro quadrado. A estrada costeira delimita a aldeia e junta-se às paredes da Colegiata de Santa Maria Madalena, numa curva que é mais um abraço e que me irá levando até ao interior por uma ziguezagueante rota pelo vale de Dragone, entre oliveiras, até chegar a Ravello. Sem ser reivindicado pelo mar e rodeado de montanhas, Ravello é hoje o último baluarte da Riviera Napolitana, lugar onde mora a cultura e onde ainda é possível respirar esse mesmo ar refinado que conquistou Wagner quando encontrou em Villa Rufolo a calma que procurava para compor. Esse mesmo lugar é hoje cenário do Festival de Música de Ravello, um dos mais importantes de Itália. Wagner não foi o único. A lista de escritores e artistas que encontraram aqui o seu lugar no mundo é tão grande como ilustre: Turner, Miró, Graham Greene, Tennessee Williams, Alberti… foi também em Ravello que D.H. Lawrence escreveu O Amante de Lady Chatterley e também aqui, escondido pelos muros cobertos de hera da Villa Cimbrone, onde outros amantes, Greta Garbo e Leopold Stokowski, viveram um tórrido caso. Passeando pelo cocktail de estilos, épocas e culturas, entre estátuas, fontes e voluptuosos jardins na Villa Cimbrone, é fácil mergulhar no glamour daquela época. Desde o impressionante Miradouro Infinito flanqueado por bustos neoclássicos, perco-me num horizonte que Gore Vidal, outro ilustre apaixonado por Ravello, definiu como «a vista mais bela do mundo».

Em Ravello, a «vista mais bela do mundo», nas palavras de Gore Vidal, ainda se respira o mesmo ar refinado que também conquistou Wagner.

É hora de seguir caminho para o sul, deixando as montanhas para trás e avançando sem perder de vista o mar. A próxima paragem é Paestum, complexo arqueológico onde está um dos templos mais belos da antiga Grécia. As proporções perfeitas do templo de Hera inspiraram o arquiteto francês Jacques-Germain Soufflot para criar o Panteão de Paris, bandeira do neoclássico que cativou a Europa. Aqui é possível deambular entre as espetaculares colunas dóricas, tocar a pedra e sentir o peso e o passar da história nos seus pilares polidos por séculos de vento. De uma pequena basílica românica situada bem perto saem gritos de «Evviva gli sposi!» Pelo pórtico aparece uma dupla de recém-casados rumo ao recinto arqueológico para tirar as fotos de casamento frente ao templo de Hera, a deusa grega protetora do matrimónio e esposa fiel, pese estar casada com Zeus, o maior crápula do Olimpo.

Antes de deixar a região de Campania, faço uma paragem em Barlotti, uma das quintas de búfalas de onde sai a melhor mozzarella do mundo. Aqui é possível comer mozzarella crua, na brasa, provar um hambúrguer de búfalo, tomar um gelado de mozzarella e até hidratar a pele com creme de leite de búfala. Sentado na esplanada do restaurante, tenho no prato uma bola branquíssima de meio quilo debaixo do olhar atento de dezenas de búfalas que me observam desde os currais salpicando-se no barro.

Agora sim, com o estômago cheio, vou a caminho da região de Basilicata até uma das mais belas e misteriosas cidades italianas. Depois de duas horas e meia de viagem, surge à distância o perfil de pedra de Matera. Nada nos prepara para essa primeira impressão quando, depois de caminhar pelas estreitas ruas empedradas, aparece um vale de casas escavadas na vegetação vulcânica. Telhados que são o chão de outras casas construídas sobre elas numa amálgama de grutas e casas monocromáticas que fazem que a cidade pareça um gigantesco presépio de pedra, que lembra aqueles que se vendem nas ruas de Nápoles.

Uma amálgama de casas-grutas que parecem um gigantesco presépio de pedra, assim é Matera, a cidade mais antigo de Itália.

Nos seguintes dias, sucedem-se entardeceres de um vermelho irreal, tempestades furiosas precedidas de nuvens negras e até um duplo arco-íris surgido desde as profundezas do barranco da Gravina, como se o impacto dramático desta cidade, por si só, não fosse suficiente e tivesse de deitar a mão a efeitos especiais meteorológicos para acentuá-lo. A sensação de estar num lugar primitivo constata-se ao averiguar que se trata da cidade mais antiga de Itália, lugar habitado desde o Paleolítico, nas grutas calcárias que ainda hoje perduram. A partir dessas grutas, e durante séculos, surgiram outras e foram-se construindo casas, igrejas e passagens subterrâneas que deram forma ao complexo tecido urbano atual desta fascinante cidade.

Muitos dos antigos sassi (grutas-casas) transformaram-se em restaurantes e hotéis-boutique, como o Ai Maestri, onde as paredes do quarto se ajustam às formas arredondadas da gruta original escavada na rocha vulcânica. A proprietária do hotel conta como a atual Capital Europeia da Cultura era praticamente uma aldeia abandonada há apenas duas décadas. A rodagem do filme A Paixão de Cristo, de Mel Gibson, fez o milagre, deu a conhecê-la mundialmente e acelerou a sua recuperação. Cenário cinematográfico de outros filmes como O Rei David e O Evangelho Segundo São Mateus, a cidade acentua as suas credenciais de plateau quando, ao cair a noite, se ilumina con a luz ocre e ténue dos candeeiros de rua que a salpicam. Durante o dia espera-me o circuito de íntimas capelas rupestres com frescos bizantinos, os palácios e museus barrocos da Via del Corso, na parte «moderna» de Matera, e as ruas labirínticas no antigo bairro de Sasso Cavemos. A dez quilómetros de Matera está a chamada «Capela Sistina da arte rupestre» com os seus frescos do século XIII recentemente restaurados e aberta ao público há apenas dois anos.

Ao longo do caminho, há sempre locais onde apetece ficar. E o apelo da boa comida costeira ajuda a tomar decisões.

Com a cabeça ainda a abarrotar das imagens desta assombrosa cidade, é tempo de regressar a Nápoles para apanhar o avião de volta. De caminho, uma paragem no tempo na cidade adormecida de Pompeia. Passear pelas suas ruas e praças e admirar as suas casas conservadas intactas debaixo das cinzas vomitadas pelo Vesúvio em 79 d.C. é uma experiência esmagadora, uma janela única de onde se assoma à história. Quero gozar os últimos dias em Itália aproveitando os raios de sol com os pés mergulhados nas águas claras do mar Tirreno. Três ilhas a curta distância de Nápoles e só há tempo para uma. Capri é a menina bonita, arrebatadora e glamorosa, refúgio de poetas e lugar de recreio do jet-set. «O lar das sereias», dizia Homero, é hoje paragem obrigatória de milhares de turistas que colapsam a Costa Amalfitana tentando capturar la dolce vita em excursões de um dia.

Passear pelas ruas de Pompeia e admirar as suas casas conservadas intactas sob as cinzas vomitadas pelo Vesúvio em 79 d.C é esmagador.

A segunda ilha, Isquia, a maior do golfo de Nápoles, com as suas águas termais das entranhas vulcânicas, é hoje uma ilha para termas. Fiel ao roteiro em busca do autêntico desta roadtrip, escolho Procida, a irmã mais pequena das ilhas napolitanas, modesta e humilde e, por isso, mais verdadeira, tão discreta e silenciosa como a inesquecível personagem do carteiro do filme Il Postino, rodado aqui. Debruçado na varanda do quarto, na La Casa Sul Mare, fico hipnotizado contemplando as fachadas de cor pastel no velho porto da Corrichela, As pequenas casas construídas de forma espontânea, umas por cima de outras, fazem lembrar os quadros geométricos de Paul Klee. Até pode ter sido mesmo aqui que o pintor experimentou a sua epifania com a cor: «A cor domina-me. Não necessito ir à sua procura. Possui-me, eu e a cor somos um.» Enquanto penso nisto, o sol do entardecer sobe a intensidade dos tons das fachadas até que a noite os apaga e são substituídos por luzes que iluminam o porto como uma árvore de Natal. A melancolia é o invólucro de uma ilha que nunca cresceu (tem os mesmos habitantes, uns dez mil, de há meio século) e que por alguma inexplicável e afortunada razão passou ao lado do turismo. Nas hortas familiares continua a cultivar-se limões que acabarão macerados em garrafas de limoncello e, no porto de Marina Corricela, os pescadores remendam todos os dias as redes. Aqui, boias, amarras e redes emaranhadas partilham o cais com as esplanadas dos restaurantes onde se servem biqueirões, o choco e o polvo pescados nessa noite.

O caráter monumental das cidades italianas está bem presente nesta viagem entre a cidade portuária de Salerno e Sorrento, com saída em Nápoles.

Alugo uma bicicleta elétrica para percorrer a pequena mas escarpada ilha e perco-me pelas suas estradas estreitas entre limoeiros e triciclos que ultrapassam impacientes e golpe de buzina. A ilha está rodeada de pequenas praias de areia negra, vulcânica e de águas tão cristalinas como as de Capri, se bem que sem o tom turquesa do mar. Nesta ilha de aldeia, o cemitério é a referência para chegar até à praia de Pozzovechio, lugar onde o carteiro de Il Postino descobre, pela mão de Neruda, o que é uma metáfora. No coração da ilha, a noventa metros de altura sobre as falésias, ergue-se Terra Murata, o velho centro histórico amuralhado de Prócida, lugar de refúgio contra os sarracenos. Um medo antigo que hoje ainda se respira no Palazzo d’Avalos convertido em prisão e atualmente abandonado, e nas inquietantes catacumbas da Abadia de San Michele Arcangelo. Felizmente, esta sensação de ligeira claustrofobia dissipa-se ao chegar ao miradouro da abadia, com as suas impressionantes vistas do golfo de Nápoles. Concentrado num navio que faz círculos no Tirreno, escuto fogos-de-artifício e petardos provenientes da Marina Grande. Quando lá chego explicam-me a razão do alvoroço: as relíquias de um santo acabam de chegar por barco desde Nápoles para ficar na Igreja de Santa Maria della Pietà. Toda a aldeia se junta na igreja, cheia até ao teto, para receber com confetti e música os ossos de tão ilustre novo habitante. O tempo passa nesta maravilhosa ilha que, apesar das suas cores de Instagram, ainda é capaz de nos oferecer momentos a preto e branco.

Procida, a mais pequena das ilhas napolitanas, tão discreta e silenciosa como a inesquecível personagem do carteiro de Il Postino, rodado aqui.

Guia de viagem

Viajar

Documentos: Cartão do Cidadão ou Passaporte
Moeda: Euro
Fuso horário: GMT+1 hora
Idioma: Italiano

Ir

A TAP voa diretamente para Nápoles, desde Lisboa, a partir de 134 euros ida e volta.

Quando ir

Primavera e verão são as temporadas mais agradáveis para visitar o sul de Itália. De março a setembro aproveite para conhecer um destino de praia, montanha, gastronomia e cidades de onde não apetece sair.

Dormir

Nápoles

Decumani Hotel de Charme
No centro histórico de Nápoles, a 200 metros da Igreja de Santa Chiara. Salão do século XVIII ricamente decorado, quartos elegantes.
Quarto duplo a partir de 168 euros por noite com pequeno-almoço
Via San Giovanni Maggiore Pignatelli, 15
Tel.: +(39) 0815518188
Web: decumani.com

Sorrento

Maison la Minervetta
No topo de uma falésia de Sorrento, com vistas únicas sobre a baía da Nápoles e o monte Vesúvio. Terraço convidativo, com espreguiçadeiras, quartos com janelas do teto ao chão e varandas panorâmicas. Praia privada a 200 metros do hotel, junto à aldeia de Marina Grande.
Quarto duplo a partir de 299 euros por noite com pequeno-almoço
Via Capo, 25, Sorrento
Tel.: +39 081 877 4455
Web: laminervetta.com

Ravello

Hotel Palumbo
É um dos mais antigos hotéis de Itália, tendo recebido estrelas das mais diversas áreas como o compositor Richard Wagner, o ator Humphrey Bogart ou os casais Jack e Jackie Kennedy e Angelina Jolie e Brad Pitt. Palácio do século XII que representa o charme e o luxo da costa de Amalfi.
Quarto duplo a partir de 301 euros por noite com pequeno-almoço
Via San Giovanni del Toro, 16
Tel.: +39 089 8586084
Web: hotelpalumbo.it

Matera

Hotel Ai Maestri
Museu MUSMA, catedral da cidade, Igreja de São Pedro Barisiano e Convento de Santo Agostinho estão nas proximidades desta unidade, desde que tenha carro à mão. O buffet de pequeno-almoço é bastante elogiado.
Quarto duplo a partir de 160 euros por noite com pequeno-almoço
Via Fiorentini – Scalinata via Sette Dolori
Tel.: +39 0835 18577 65
Web: aimaestri.it

Procida

Hotel la Casa Sul Mare
Em plena ilha de Procida, quartos com terraço e vista de mar. A praia está a um quilómetro e o porto a cinco minutos de automóvel. Ideal para uma viagem a dois.
Quarto duplo a partir de 250 euros por noite com pequeno-almoço
Via Salita Castello, 13
Web: lacasasulmare.it

Comer

Itália e gastronomia andam de mãos dadas. No sul então, a maior dificuldade é escolher. Das pizas às saladas, das massas aos gelados, é difícil suplantar a oferta de restauranção italiana. Eis alguns locais para se surpreender.

Nápoles

Confiteria Pintauro
it-it.facebook.com/pages/PasticceriaPintauro/1531594060250967

Restaurante Tandem
tandem.napoli.it

Pizzeria Gino Sorbillo
sorbillo.it

Sorrento

Restaurante Ill Buco
ilbucoristorante.it

Ravello

Trattoria Da Cumpa’Cosimo
tripadvisor.es/

Paestum

Quinta de búfalas Barlotti
barlotti.it

Matera

Restaurante La Cola Cola
lacolacola.it/?lang=en

Procida

Restaurante Caracalé
procida.it/caracalè/


Reportagem publicada originalmente na edição de outubro de 2019 da revista Volta ao Mundo, número 300.

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