Vamos em silêncio. A estrada é interminável. De um lado, apenas uma grande extensão desértica, terra clara, sem qualquer vegetação; do outro lado, a continuação dessa extensão, terra com a mesma cor. Horizonte de todos os lados, a estrada a avançar debaixo dos pneus, a linha intermitente a piscar. A estrada plana, lisa, sem atrito, a velocidade constante, o relevo da paisagem a agitar-se, como ondas de terra. Fui eu que desliguei o rádio. Tirei a mão do volante, estiquei-a. Houve um momento em que deixámos de conseguir sintonizar estações portuguesas. Ao contrário do que imaginámos, esse momento não aconteceu à passagem pela fronteira, tão-pouco à passagem por Badajoz. Estávamos já no interior de Espanha e, sem imaginarem, locutores continuavam a falar-nos do trânsito da VCI e do IC19. Foi já na Extremadura profunda, quando passávamos por tabuletas para pueblos de que nunca ouvimos falar, que as vozes e as músicas começaram a desfazer-se em ruído estático. Ela sintonizou duas ou três estações espanholas, entendíamos a língua, mas não entendíamos os assuntos. Tirei a mão do volante, estiquei-a, desliguei o rádio. Vamos em silêncio.

Antes, as pesetas, a fronteira. Antes, aquela moeda de 25 pesetas, com um buraco no centro, cheguei a andar com uma ao pescoço durante alguns anos, ou seriam meses que agora parecem anos? Antes, a necessidade de parar e mostrar os documentos: primeiro, no lado português e, após alguns metros, no lado espanhol. Era a década de 1980 e eu tinha orgulho de já ter bilhete de identidade. Às vezes, os guardas podiam pedir-nos para revistar o porta-bagagens, o meu pai saía do lugar do condutor e acompanhava essa fiscalização. Agora, a fronteira é uma linha ainda mais invisível, a sinalização na berma da estrada muda de idioma.

Às vezes, os guardas podiam pedir-nos para revistar o porta-bagagens, o meu pai saía do lugar do condutor e acompanhava essa fiscalização.

Tenho estado a adiar uma paragem, sei que falta ainda muito para chegar ao nosso destino, quero avançar o máximo possível. Sei como será o desvio para essa bomba de gasolina, sou capaz de convocar o sabor do café con leche que chegará num copo ao balcão de alumínio, as bolas de naftalina nos urinóis dos servicios. Esse será, realmente, o nosso primeiro contacto direto com Espanha: as máquinas de moedas, a televisão a transmitir um concurso garrido, alguém a falar para nós em castelhano do outro lado do balcão. Haverá talvez cascas de amendoim no chão, camionistas no parque de estacionamento, a gasolina será mais barata.

Hoje, incrivelmente, acordámos em casa e adormeceremos num quarto que ainda não imaginamos. Esta estrada é como um túnel até esse momento. Já não são necessários os mapas que abria no colo quando era o meu pai a conduzir: apenas dois ou três quadrados da península, não conseguia estendê-la completamente e, depois, não conseguia voltar a dobrar o mapa pelos mesmos vincos. Agora, a estrada é interminável e, no entanto, acredito que conseguiremos alcançar o horizonte. Quantos quilómetros teremos avançado desde o início destas palavras?

Imagem de destaque: Direitos Reservados

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Crónica publicada originalmente na edição de janeiro de 2020 da revista Volta ao Mundo, número 303.

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