Haruki Murakami é o escritor mais famoso do Japão e, ao mesmo tempo, o menos japonês dos escritores. Criador de mundos paralelos e obsessivamente ocidental, Murakami e os seus livros falam-nos de personagens que navegam por cenários e situações que poderiam ocorrer em Londres ou Nova Iorque. Fomos ao Japão, nos passos do escritor, para descobrir que a Tóquio de Murakami se acende com luzes de néon, jazz e um copo de whisky na mão.

Texto e fotografias de Rafael Estefania

O outono e o dia nebuloso, e com chuva fina que ensopa até aos ossos, até poderiam ter sido escritos pelo próprio Murakami. As gotas de água condensam-se na parte exterior do vidro até que se fazem suficientemente pesadas para deslizar janela abaixo. Estou em La Kagu, um antigo armazém de livros reconvertido em café, livraria, galeria de arte e loja no bairro de Kagurazaka.

Rodeado de livros, este lugar é perfeito para se entrar no percurso de um escritor que fez de Tóquio o seu habitat mais prolífico. A música que soa é Kind of Blues, de Miles Davis. Um sinal, pois o jazz é a banda sonora recorrente nos livros de Murakami. O que averiguarei passados uns dias em Tóquio é que o jazz não é só património das suas histórias, mas sim a banda sonora da cidade, da mesma forma que os acordes de jazz vintage de Woody Allen são a banda sonora de Nova Iorque. Em lojas, cafés, restaurantes, clubes de jazz, escuta-se jazz e nos jazz kissaten, abertos desde manhã, as pessoas tomam café enquanto ouvem com devoção discos raros, porque o jazz é a música que acompanha a vida diária de muitos habitantes de Tóquio.

Ainda mais do que a música, a outra paixão dos japoneses é a literatura. O Japão é o país onde mais se lê, com 91 por cento da sua população de leitores habituais e uma média de leitura por pessoa de quatro livros ao mês. Aqui, existem livrarias enormes como a Buntkisu, onde se paga entrada como se fosse um museu, e outras diminutas, como a Morioka Shoten, onde se vende um único exemplar por semana. Não é de estranhar que num país de leitores empedernidos, se considere Murakami, e os seus catorze livros, objetos de culto.

O amor à palavra escrita foge às livrarias e chega até aos hostels e assim é no original Book and Bed, onde é possível dormir entre estantes, rodeado de livros. Logicamente, para um artigo como este, a minha escolha não poderia ser outra. Neste hostel decididamente cool, uma rapariga com um gorro de lã hipster leva-me até ao cubículo que surge entre as estantes repletas de livros que será o meu quarto. Um candeeiro de noite e uma cortina é tudo o que os jovens intelectuais chiques (e eu) necessitam para passar uma noite iluminada. Isso e a abundante provisão de livros de todo o tipo, entre os quais também se encontram títulos e revistas em inglês. Na minha mesa-de-cabeceira, dois livros: After Dark – Os Passageiros da Noite e Norwegian Wood. Assim, todas as noites, depois de percorrer as ruas de Tóquio em busca de Murakami, deitar-me-ei com ele (metaforicamente) na minha cama literária. Na manhã seguinte tomo o pequeno-almoço no café Bundan, dentro do Museu de Literatura Moderna Japonesa. No menu, salsichas com tomate e tostas, uma refeição diretamente sacada do livro de Murakami Hard-boiled Wonderland and the End of the World, toda uma homenagem ao escritor rica em colesterol. Aqui este é o prato mais popular para estômagos e selfies.

Haruki Murakami nasceu a 12 de Janeiro de 1949 em quioto. Os seus livros estão traduzidos em mais de cinquenta idiomas e em 2015 entrou Para a lista dos cem escritores mais influentes da revista Time.

A paixão que provoca Murakami em Tóquio está presente em cafés literários onde leitores, fãs do autor, conhecidos como harukists, se reúnem a ler e a trocar opiniões sobre os seus livros. No café Rokujigen, todos os anos, o anúncio do Prémio Nobel de Literatura é acompanhado em direto por dezenas de entusiastas que aqui vêm para seguir o evento diante do televisor, como se dos Óscares se tratasse. Para ver se um ano, por fim, se rompe a maldição e o finalista em sete edições consecutivas é finalmente galardoado com o Nobel. Não quero nem imaginar a sua deceção – e a de outros duzentos harukists – que em 2017 se juntaram num templo de Tóquio, armados com confetti, quando outro autor japonês, Kazuo Ishguro, ganhou o Nobel, ignorando novamente o mais eterno dos candidatos.

Seguindo os conselhos dos amantes protagonistas de um dos mais famosos títulos de Murakami, Norwegian Wood, «caminhando e caminhando por Tóquio sem um destino em mente», percorro o bairro de Shinkuju. Uma das coisas que mais me surpreendem em Tóquio é a baixa intensidade de ruído, algo verdadeiramente incrível naquela que é a urbe mais povoada do planeta, com 36 milhões de almas. Os carros circulam silenciosos por um asfalto que parece absorver o som.

As apitadelas das buzinas não existem, como se os carros não as trouxessem de série ou, melhor, como se o seu som fosse um atentado contra a requintada educação japonesa. Massas de gente movem-se de forma ordenada pelos passeios e o ritmo da cidade parece fluir de maneira discreta e sem estridências. Quando chegamos a Shibuya e atravessamos a passadeira para peões mais famosa do planeta (com permissão da de Abbey Road, dos Beatles), a coisa muda, mas não são eles, e sim os turistas, que param para fazer selfies, e andam para trás, quem altera o fluir perfeito da maré humana. É nesta zona que se concentra a maior parte dos turistas em redor das lojas e dos restaurantes, guiados pelo brilho dos néons que decoram as fachadas. Ao virar da esquina, afastada das ruas comerciais, está a colina dos Love Hotels. As ruas vão ficando mais estreitas e a iluminação dos letreiros dos Love Hotels detalham os preços dos seus quartos em tarifas de noite ou de apenas umas horas. Os preços do alojamento em Tóquio fizeram que estes hotéis, pensados como cenário de paixões de casais sem apartamento próprio ou território de affaires extramatrimoniais, se tenham convertido numa boa opção de alojamento para os turistas. Baratos, centrais, limpos e discretos, ainda que não isentos de sons de luxúria desde os quartos contíguos. Como era de esperar, à sombra destes locais surgem prostíbulos como os que recria Murakami no seu livro After Dark – Os Passageiros da Noite. Aqui, é fácil imaginar a porta do Alphaville com a sua madame Kaoru a cargo do local, as prostitutas e o ambiente rarefeito da noite e o negócio do sexo, tão magistralmente descrito por Murakami. «A meio da noite, o tempo move-se à sua maneira e não podes lutar contra ele», afirma o manager de um clube de jazz em After Dark – Os Passageiros da Noite, uma história que acontece em 24 horas, onde se sucedem os encontros, os cafés, o jazz, os Love Hotels e a solidão. Por trás de Shibuya, em Jingumae, as galerias de arte e lojas de decoração alternam com casas de design vanguardista.

As avenidas do elegante bairro comercial de Omotesando revelam opulência neste bairro conhecido como os Campos Elísios de Tóquio. Um pouco mais a sul, no opulento Otoyama, repetem-se as esplanadas de modernos restaurantes com boutiques de luxo desenhadas pelos melhores arquitetos do mundo. A loja Prada aparece como um templo futurista feito com painéis geométricos de vidro. É neste exclusivo bairro que Aomame, uma das personagens do livro 1Q84, vai às compras, e é também aqui que Murakami tem o seu escritório.

Por perto estão as instalações desportivas de Meiji Jingu Gaien, onde o escritor, um apaixonado pela corrida (descreve com detalhe a sua paixão em Do Que Eu Falo quando Eu Falo de Corrida) corre os seus dez quilómetros diários após terminar as quatro horas por dia em que se dedica à escrita. O seu percurso passa ao lado do estádio de basebol Jingu onde, a meio de um jogo, Murakami teve a sua epifania e decidiu tornar-se escritor aos 30 anos.

O mundo fantástico de Murakami também está na rua. Sem chegar ao extremo das suas obras onde surgem rãs gigantes que salvam Tóquio de um terremoto ou gatos que falam, as personagens que se encontram em Harajuku parecem também saídas do mundo do surreal. Domingo é o dia de encontro dos cosplayers na rua Takeshita-dori, que se transforma numa delirante passerelle onde desfilam lolitas góticas, decora, wamomo, anime, cyber fashion e outras tribos urbanas que fazem parte da paisagem urbana mais pop e mais excêntrica desta cidade.

A paragem seguinte está um pouco afastada do circuito habitual – o campus da Universidade de Waseda, lugar-chave na vida e obra de Murakami. Aqui estudou e viveu em 1969, como também o fez Toru Watanabe, o jovem protagonista de Norwegian Wood. A residência de estudantes permanece exatamente como no livro. Hoje é dia da festa da universidade e em redor do campus há concertos e desfiles com bandas de música típicas das universidades norte-americanas. As ruas arborizadas estão repletas e a energia de milhares de adolescentes é contagiosa. Neste ambiente carregado de hormonas, é fácil sermos transportados às revoltas estudantis de Norwegian Wood e visualizar os temas recorrentes na sua obra: amizade, amor e sexo adolescente.
De tudo isto também há de sobra no novo bairro hipster de Tóquio, Shimokitazawa. Nas suas pequenas ruas de casas baixas respira-se o ambiente de bairro boémio entre lojas vintage, pequenos expresso rooms, charmosos restaurantes e o estilo shimokita dos jovens artistas, músicos e fashionistas que vivem aqui sabendo que são os habitantes do bairro mais cool do Japão.
Em Shimokitazawa, o café é o combustível que flui pelas veias do bairro e, como bom lugar boémio, aqui não se madruga para bebê-lo. Muitos cafés não abrem antes das 11h00. Tradicional, excêntrico, hipster ou artesanal, a lista de cafés é interminável.

Os roteiros do universo de Murakami pelas ruas de Tóquio são cada vez mais populares. Locais como o Golden Gai, bares de jazz ou livrarias fazem parte da experiência.

Como era de esperar, as lojas são também parte do ADN local, mas fazer compras aqui escreve-se com V, de vintage. Poisos boémios que fazem imaginar os adolescentes das novelas de Murakami, procurando pechinchas na Tokyo Department Store, antiga fábrica de cerveja reconvertida, ou passando horas no Flash Disc Ranch, lugar de culto do vinil, rebuscando joias musicais nacionais e internacionais de 33 rotações por minuto.

Cai a tarde e dirijo-me para uma das zonas com mais alma de Tóquio. Nas obscuras vielas que formam o Golden Gai, surgem como cogumelos bares minúsculos que sobreviveram a terremotos e a bombardeamentos (há cerca de 200 bares e izayakas). Alguns, com espaço somente para dois ou três clientes, são locais para provar cerveja, sake, noite e conversa com o empregado (que costuma ser também o proprietário). Sentado ao balcão do bar, no seu lugar de sempre, é fácil imaginar também o homem de Murakami, solitário, noctívago, cómodo longe das multidões e na companhia da conversa cúmplice com outros inadaptados como ele.

A ruela de Omoide Yokocho é outra viagem no tempo, à Tóquio de 1950, onde se sobrepõe, de ambos os lados, uma sucessão de pequenos restaurantes especializados em espetadas grelhadas, yakitori. Sento-me ao balcão literalmente incrustado entre outras duas pessoas e um menu sem tradução, deixo-me guiar pelo que se grelha e pelo que pedem os meus vizinhos de balcão. É curioso que um país tão receoso do contacto físico perca totalmente as inibições à hora de jantar e desfrute ombro a ombro da proximidade e do calor humano.

O último copo da noite tem nome e lugar. Não pode ser outro são o Jazz Bar em Shinjuku. As escadas decoradas com cartazes de concertos e fotos de jazz levam até à cave de tijolo, ao mais puro estilo de Nova Iorque. Neste bar, aberto desde 1961, os protagonistas de Norwegian Wood, Watanabe and Midori, queimavam a noite entre copos e conversa. Em After Dark – Os Passageiros da Noite, também os copos, a conversa e a salada de frango na mesa de um Denny’s Diner são o que faz que Mari e Takahashi se agarrem a uma longa noite que só acabará com o primeiro comboio da manhã.
Murakami explorou, nos anos 1970, um bar de jazz chamado Peter Cat. Hoje, as personagens dos seus livros continuam a explorar as noites de Tóquio.


Guia de viagem

Documentos: Passaporte
Moeda: Iene (JPY); 1 euro equivale a 122 JPY
Fuso horário: GMT + 9 horas
Idioma: Japonês

Dormir

Book and Bed
Doces sonhos entre livros no mais literário dos hostels.
Desde 41 euros por noite, por pessoa
Kabukicho APM Building 8th FL
27-5 1- Chome Kabukicho, Shinjuku
bookandbedtokyo.com

Hotel Koe
Estilo industrial minimalista neste moderno hotel perto de Shibuya e do seu famoso cruzamento.
Quarto duplo a partir de 171 euros
3F, 3-7 Udagawacho, Shibuya
hotelkoe.com

Hotel SK Plaza
Para uma experiência imersiva no mundo After Dark aloje-se neste Love Hotel no bairro vermelho de Shibuya.
Quarto individual desde 31 euros
50-0043 Tokyo, Shibuya City, 17
hotel-guide.jp/shop/sk-plaza1

Comer

Shin Udon
Os melhores udon de Tóquio em pleno bairro de Shinjuku.
2 Chome-20-16 Yoyogi, Shibuya
Tel.: +81 3 6276 7816

Rua Omoide Yokocho
Qualquer um dos deliciosos yakitoris em ambos os lados da rua.

La Kagu
Comida saudável e com toque ocidental num centro cultural.
67 Yaraicho, Shinjuku-ku
lakagu.com

Tokyo Station
A rua dos ramen, em redor da estação de Tóquio, é um lugar de culto para os amantes de massa de arroz.

Shirube Izakaya
Deliciosas tapas japonesas no bairro cool de Shimokitazawa.
2 Chome-18-2 Kitazawa,Setagaya

A não perder

1- Café Bundan, o pequeno-almoço de Hard-boiled Wonderland and the End of the World.
2 – A colina dos Love Hotels, o bairro vermelho de After Dark – Os Passageiros da Noite.
3 – Otoyama, ir às compras no livro 1Q84 e bairro do escritório verdadeiro de Murakami.
5 -Instalações desportivas de Meiji Jingu Gaien, local de treino diário de Murakami em Do Que Falo quando Eu Falo de Corrida.
6 – Estádio de basebol Jingu, a epifania de Murakami quando decidiu tornar-se escritor.
7 – Universidade de Waseda, a universidade de Murakami e a de Toru Watanabe, protagonista de Norwegian Wood
8 – Jazz bar Dug, jazz club de Norwegian Wood
9 – Denny’s Diner, noites de conversa neste diner do livro After Dark – Os Passageiros da Noite


Reportagem publicada originalmente na edição de fevereiro de 2020 da revista Volta ao Mundo, número 304.

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