Kafkiana, Opus Ensemble

Onze meses depois da sua morte, recuperamos a arte de Agustina Bessa-Luís e da vez que viajou até Praga com a Volta ao Mundo. A escritora perseguiu as sombras da presença de Franz Kafka na capital da então República Checa, hoje autodenominada Chéquia. Um texto magnífico que é, simultaneamente, o retrato de uma cidade e o perfil de um génio. Quem disse que não se viaja na quarentena?

Texto Agustina Bessa Luís
Fotografia Yves Callewaert

Em Praga não há a mesma perpectiva para ver Kafka e a obra dele, a mesma que nós temos, os latinos. Há um mau monumento a Kafka, como nós temos no Chiado um mau monumento a Fernando Pessoa. Ambos são condecorações da cidade, mas não retratos e muito menos memória duma obra e dum sentimento ambíguo do que é existir. Ambos têm chapéu na cabeça, de funcionários públicos. Justamente, ao lado, com um desprezo contido, passa um homem por entre a turba de turistas italianos e que parecem sempre os mesmos, em ruidosa festa de estudantes. É um homem extraordinário. Debaixo do floco leve da neve, ele passa. Tem um chapéu enorme na cabeça; um chapéu que derrama no rosto belo uma sombra delicada e teatral. Ao pé do Kafka é um deus incógnito, vestido de preto, no inverno doce da cidade. É assim que Kafka talvez gostasse de ser, o deus incógnito na cidade.

Porque ele é, mais do que nenhum outro escritor, uma presença urbana, descontente com a sua obra, descontente com a crepuscular elegância do castelo que ele não habita mas que escolhe como morada. Os livros de Kafka são um acto de paciência, mais do que uma prova de talento. Ele sabe isto muito bem. Nós só adivinhamos. Em todo o judeu há um processo de grandeza que não conhece solução. Esta é a definição do Processo de Kafka. Nada de tão dramático, apenas um caso de espera na sala mais burocrática que há; onde se espera que alguma coisa aconteça, para a qual nos armamos de paciência, e é tudo o que temos. Os papéis são inúteis, as certidões escusadas, as rubricas dispensáveis mas sempre e pacientemente executadas.

O bairro judeu foi arrasado; as pequenas casas iguais às que faziam dizer à mãe de Rockfeller que bem sabia que os cavalos deles estavam melhor alojados, essas casas já não existem. Para lá dos muros do cemitério judeu há ainda um sopro paciente, que resiste e que a neve não consegue sepultar. Mas os terrenos valem cada vez mais, o tecido urbano cobra os seus direitos, e Kafka desaparece debaixo da gritaria dos jovens turistas ou do franzido rosto dos turistas velhos que enchem a cidade e se apinham na ponte e comem as grandes pratadas de goulash, como se desempenhassem um papel de Gargantuas. O que se mostra como a casa de Kafka é um segundo andar burguês, com janelas fim-de-século e uma loja térrea onde se vendem postais, t-shirts, cinzeiros, porta-chaves, tudo com a cara de Kafka estampada duma maneira indecente, desfigurada. Há panos de mesa com a cara de Kafka, tão magro e padecente que nos parece mais o Cristo do Calvário. E, no entanto, Kafka existe, é um homem bom, honesto, que ama o pai e a família e que se ri porque o amor lhe parece absurdo, louco e completamente fora de moda.

A grande ideia de Kafka é a de que o amor está fora de moda. As mulheres fazem-no rir, com os seus insólitos buracos que servem, ao que dizem para ajustar parafusos e molas. Esta ideia basta para que ele se ria como um louco ao ler os seus textos perante uma assembleia de pessoas que riem com ele às gargalhadas. Não, de modo nenhum, ele não é um trágico como Hamlet ou outro assim. É um homem que discute com o que o pensa e com o que escreve. Sabe que não devia pensar nada daquilo, e isso confrange-o. Tenta fazer um drama com os seus enredos, as situações, as ideias aprendidas. Mas sempre espreita o riso, sufocado, que há-de um dia atravessar-se-lhe na garganta e causar-lhe a morte. Não é a tuberculose na laringe que o leva. É o riso. Ensinaram-lhe que a vida não é brincadeira nenhuma, que se deve ser cerimonioso com as coisas sérias, ter filhos, fazer fortuna e fazer uma mulher feliz. Ainda que fazer uma mulher feliz depende muito do facto de não casar com ela.

O Castelo, que se impõe a toda a cidade do cimo da sua colina branqueada pela neve, é um lugar mítico que recorda os Habsburgos e ainda tem como distintivo o render da guarda. Uma turba de turistas italianos, estudantes talvez em férias pascais, assobiam alegremente o cerimonial dos guardas cujas peles não são mais de lobo das estepes ou de astrakan, mas sintéticas. É inacreditável a multidão que o Castelo atrai. Um pequeno grupo de portugueses reconhece-me e fica assombrado de me ver ali, com Zuzana, a jovem acompanhante, e Yves, que faz fotografia, como se vê pela bagagem das suas máquinas. Estamos de retorno da sessão na Biblioteca Municipal, cuja escadaria é rematada com a ideia prodigiosa dum arquitecto: uma pilha de livros colados até fazer uma coluna gigantesca; dentro, um espelho da impressão vertiginosa dum poço que teria agradado a Allan Poe. Há livros do mundo inteiro, mas só retenho o nome de poucos, que a celebridade em massa muito se desvanece.

Voltando ao Castelo: é quase impossível que não tivesse criado no jovem Kafka uma espécie de alucinação, ainda que frugal e sem consequências lastimosas. A sua imensidão imperial podia ter criado o sentimento da burocracia completamente fora da realidade virtual. Zuzana, que contesta tudo e me dá réplica, acha que não. Mas Kafka é bem um filho do Castelo que faz eco ao pai que lhe exige exemplo e boas maneiras. A Catedral de S.Vito remata a impressão, dentro do pátio do Castelo, da grande fortaleza da fé e das leias que não são para ignorar. Um pequeno café, fora do recinto que devora visitantes como biscoitos, serve de repouso ao som duma valsa musette. Há duas reproduções da Mona Lisa na parede, assim como um retrato do Papa. É o bastante para nos sentirmos latinos por dentro e por fora. Um exército de frascos de molhos espera ser usado na comida. Há desde o tabasco à soja; desde paprika à mostarda. É toda uma orquesta de sabores e de frascos de rótulos meio apagados. Não lhes tocamos. Sobre o balcão, uma grinalda de luzes e figuras de musas, de duendes, de tudo o que pode constituir decoração. A valsa musette continua sempre, e um cozinheiro, como um lutador greco-romano, vem até à porta vigiar um fogão aquecido de que não sabemos a razão de ser. Mas a razão de ser das coisas não tem muita importância. Volta a nevar; flocos como papel voam pelo ar. É confortável ver a neve sem ter frio, esse frio que se vê apenas e não se sente, como dizia a Todi quando foi à Rússia a convite da Imperatriz Catarina. A Todi, para quem, não souber, era uma cantante de ópera. A czarina deu-lhe um colar que se perdeu decerto quando aconteceu o desastre da Ponte das Barcas, no Porto. Quem não souber, paciência, que o texto não pede estes apartes históricos.

Dizia eu que Kafka. Não sei se Praga teria tantos turistas sem ele, a obra dele, e os filmes sobre a vida dele. Vêm ao cheiro de santidade que se desprende de tudo que é consagrado pela propaganda. Kafka fez uma época de depressivos, quando afinal ele era bem humorado, amigo do seu amigo e um solteirão convencido. Não há muitos solteirões convencidos; até os anacoretas do deserto, como Santo Antão, não o são. A prova está nas suas lúbricas e sedutoras visões. Dizia-me o doutor Carolli, que foi médico do Onassis e meu também, que o nosso Santo António era o do porquinho. Eu disse que não; que o nosso António era casamenteiro e advogado de causas perdidas. O povo, que se adapta ao sentido que lhe convém, trocou causas por coisas. E, assim, perde-se uma chave ou uma carta e logo se responsa a Santo António que, por isso, corresponde ao pedido. Não há santo tão pronto a ser louvado para o que não tem jeito.

Em Praga come-se divinamente, por exemplo, na Casa Municipal há um restaurante onde Klimt podia ter levado os seus modelos de arte nova. Há frescos nesse estilo sumptuoso, os guardanapos são daqueles que têm vida própria e deslizam como a esteira dum barco para o chão se não os prendemos à cinta com um alfinete. Ditosos tempos em que o guardanapo tinha o tamanho de lençóis e se atava ao pescoço como se fôssemos oficiar no templo do molho e da ostra portuguesa. Vê-se neve a cair lá fora, o que dá a sensação de conforto e paz. Comer numa esplanada não se compara ao recolhimento dum restaurante aquecido, com pratos aquecidos e talheres de velho cristofle. Imagino que o cristofle seja comum numa terra de minas de prata. Os milionários da prata deixaram bem visíveis os seus palacetes onde, num dia de verão, as cortinas enfunavam fora das janelas. Era uma sociedade burguesa, distinta sem ser elegante e que Kafka devia ter conhecido de vista. Neto dum açougueiro ou salsicheiro ou o que fosse, tendo o pai uma loja de novidades, com a qual se fez rico, imagino-o como um Proust do Norte, sempre um pouco exilado de si mesmo e a pensar em livrar-se de Praga como quem se livra dum inferno morno. Não era cidade que lhe desse muita entrada. Agora douram-lhe os passos e dizem que frequentava o café Milena. Mas não o vejo muito por lá, a beber cerveja e esquecer o pai que lhe pedia sucesso, filhos e netos. A casa barulhenta, as sentenças salomónicas, as praxes em que nadava uma fé feita de orgulho requentado, aborreciam-no de morte. Morreu de puro aborrecimento, aproveitando uma laringite benigna que desdobrou em doença grave como quem desdobra o jornal.

E, no entanto, perdeu-se assim um homem bem disposto, que gostava de rir e divertir os outros. Lia em voz alta um dos seus contos, e a assistência desfazia-se à gargalhada. Kierkegaard, outro celibatário convencido, parece-se com ele. Gosta de rir e de pregar partidas; às mulheres – a quem melhor pregar partidas na vida?

As mulheres, na obra de Kafka, são como fantasmas. Dá impressão de só ter conhecido dactilógrafas com meias de algodão enrugadas nos tornozelos; ou então criadas de bar que tinham do bolso o livrinho de encomendas com um modo de arrepiante desdém. Eu vejo Kafka, por mérito próprio, em Marienbad, a preto e branco como o filme em que Pitoeff dizia: «Posso perder mas ganho sempre». Kafka e a sua amiga vestida por Chanel, e com quem ele casava um dia indo viver cada um para o seu lado, no parque de Marienbad. Há pessoas que temos pena de ter perdido. Não as conhecendo, é como se as tivéssemos perdido. Nas ruas de Praga não está Kafka. É fugidio, aparece e desaparece, até nos livros faz a mesma coisa. Parece que tropeçamos com ele e deixa-nos na mão a manga do sobretudo. Não sei qual foi a ideia de Orson Welles de o interpretar. Orson é um cabotino perfeito, Kafka não tem nada de cabotino; é um escriba de chapéu mole.

Continuando com esta Boémia aonde chegam estudantes italianos e ingleses que vêm festejar a despedida de solteiro, a Praça Velha chama-nos. Dali parte tudo; os basbaques do relógio da Câmara, um relógio astronómico que vai dando as sonoras badaladas do meio-dia; os visitantes da catedral, os compradores de âmbar, os apreciadores dos palácios barrocos, de portas que, por si só, merecem uma visita guiada. O chão está limpo como o duma sala. Nos restaurantes típicos duas dançarinas ciganas agitam as pandeiretas e dão saltos acrobáticos. Come-se o goulash e trinta litros de cerveja são trazidos para as mesas, onde desaparecem rapidamente. A mesma neve, como papéis rasgados, voa sobre Praga.

Saindo de Praga, temos os castelos de caça que se erguem no cimo duma colina, entre florestas onde a neve está ainda leve e cai das árvores com um ruído fofo. Um esquiador do campo aberto vem a arrastar-se com a ajuda dos bastões. Os veados aparecem ao longe e, com um salto ligeiro, entram no bosque e fogem. Era nestas terras que o rei Carlos IV vinha caçar. Juntava uma manada inteira de corças ao alcance do tiro e mandava os criados que a exterminassem. O poder tem destas grosserias, com uma carga de erotismo e de impotência à mistura.

Os campos estão cobertos duma neve alvíssima, a perder de vista. Não se vê ninguém neste sábado onde só nos lugares de turismo se juntam as pessoas. Não se vêm muitos carros, provavelmente vieram de comboio. E vem à baila aquela anedota duma senhora que referiu o oportuno de se fazer um castelo tão perto da estação.

Todavia, fora do restaurante aquecido a fogo de lenha, a floresta toma o seu carácter selvagem. Não estranharíamos ouvir o uivo do lobo chamando a alcateia; nem de ouvir tiros e um corpo que cai na neve; depois o silêncio profundo, a estrada onde permanece a sensação de fuga e de terror súbito.

Chegamos a Praga já noite. O ar dá para enfunar uma vela de galeote, e os Atlantes cubistas na rua Elisky têm a cara mais escondida na sombra. Nos hotéis há um movimento que antecede o jantar, como se uma promessa se anunciasse. Há uma sala para o peixe, é servido o pargo no sal, mas não com compota vermelha de que eu gosto. Em geral, o prato na ementa tem ao lado o peso em gramas que é, quase sempre, excessivo. As pessoas já não se vestem melhor para jantar e trazem os seus sapatões de marcha que, pelo menos, não cheiram mal. Talvez sejam revestidos de desodorizante, não sei. Poucas mulheres elegantes, raparigas muito novas, penteadas com um ancinho, como se dizia dantes, ou então casais que se sentam à mesa como se celebrassem missa. A terceira idade está em força em toda a parte. De cadeira de rodas, de andarilhos, de barrete de peles, enluvada, gozando o seu ocaso com uma gula indecente. Sobem e descem nos ascensores, e os velhos casais que refazem a vida depois duma viuvez reconhecem-se porque dão as mãos como os antigos namorados. Esperam talvez produzir um efeito moral com essa última centelha de desejo que se parece a uma extrema-unção. São caricatos e sabem-no. Mas o amor nos outros é sempre caricato, com excepção para um espírito para quem a distância é uma forma de cultura. Reparem como Kafka vê a jovem de braço dado com o namorado e deixando errar em volta o olhar tranquilo! Esse homem que diz «nunca aprendi a regra» pode comover-se por um momento ao espreitar fora da sua solidão. O seu sentido estético deixa entrever um erotismo errante e fácil. Como quando observa a rapariga no café, «a sua saia estreita, a sua blusa de seda branca, solta e guarnecida de peles, o seu pescoço nu, o chapéu cinzento do mesmo tecido que lhe envolve a cabeça». Ao corrente das monografias que apareceram sobre Tolstoi antes de 1914, Kafka impressiona-se com a juventude terna e fogosa do escritor russo. «Belamente vestido, sombrio e azul escuro». O que mais admira é a profunda posse da sua personalidade, que ele não tem, Kafka. Não tem raça; tem um campo murado de sabedoria, mas falta-lhe a grandeza dos pressentimentos que só um homem senhor do seu território pode ter. Não sei se houve alguma vez na literatura um homem tão interminável. A morte não o acaba, pode-se dizer que é o seu começo. O sofrimento é para ele uma volúpia; não há ninguém como Kafka para se reconhecer na sensualidade do mundo que o cerca: uma criança enfaixada e como que prisioneira nas suas fraldas; uma mulher cujas rugas profundas poderiam causar espanto aos próprios animais. Ninguém vai tão longe na densidade corporal que ele descorre, filtra, partilha consigo próprio. Um homem assim não poderia estar a par com outra pessoa, viver com ela, casar-se e ter filhos. «Eu senti no meu corpo, antes de adormecer, o peso dos meus punhos na extremidade dos meus braços leves.» Está morto e dá acordo; interessa-se pelo que é nos outros insensibilidade e nele é vida, entendimento e perturbante forma humana. Praga não lhe podia agradar, não é uma cidade para um doente como ele, para alguém tão necessitado duma paisagem semirural que não se encontra nesta cidade tão bem edificada para ser grave e elegante, bem sucedida em suma, com as suas casas de grandeza equilibrada e nada inquietante. Kafka prefere uma «Berlim feroz nos domínios ferozes da minha vida interior». O judaísmo não é para ele um porto de paz, como ele diz, mas alguma coisa que não se exprime senão com um uivo de desesperança semelhante a um bocejo.

Praga é escolhida como uma extrema Europa onde se pode perder a alma sem que isso pareça um insulto à cultura judeo-cristã. Aqui começam os ícones e as igrejas ortodoxas. Aqui começa Franz Kafka, sabe Deus que não acaba aqui. É um homem de pressentimentos que acorda de noite, às cinco horas da manhã, exactamente, para ouvir a irmã Ottla que chama por ele. «Que querias tu?» – pergunta-lhe na carta que a seguir lhe escreve. É uma coisa digna de se observar esse relacionamento dos grandes solitários com um mundo obscuro onde tem preso o pé. Alguma coisa os prende no limiar do sobrenatural que é, no fim de contas, a elegância mais refinada que há. Kafka está sempre a escapar-se de Praga, seja em viagem pela Lapónia, em troika, ou em Teplitz, onde namora com uma jovem que não lhe agrada, como é seu costume. Em geral as suas namoradas casam-se com outros. Esta Eisner, apesar da sua histeria própria duma juventude infeliz, parece-lhe perfeita. «Aparentemente, elas são todas perfeitas». Ele é duma gentileza emocionante, tanto mais que a única solução séria entre homem e mulher lhe parece ser o casamento.

É uma lei judia que ele não se atreve a contrariar. É ele quem se obriga a tomar o compromisso quanto ao casamento; é totalmente um homem fascinante enquanto o casamento não aparece no horizonte. Sabe falar deliciosamente com as mulheres, e elas compreendem-no da única maneira que podem, oferecendo-lhe a mão e apenas a mão, se assim ele o desejar.

Que o neto dum açougueiro seja tão espirituoso e elegante, é coisa para meditar. As cartas de Kafka são das mais belas que alguma vez foram escritas. São um entretenimento permanente, em engodo, uma forma de atrair sem amar. «De resto, Minze, você é (ou antes, sereis, se o souberdes explorar) penetrante e, com todo o direito, manhosa como um pequeno rabino.» Um pequeno rabino, eis o que Kafka não é de certeza. Não há ninguém que fale do corpo humano com tanta sensualidade. Mas uma sensualidade irreal, como mística. Ainda a Minze Eisner, ele agradece as fotografias que recebeu: «A criança é soberba. O corpo magnificamente animal, como uma foca sobre um bloco de gelo no mar polar; o rosto tão magnificamente humano, mais à maneira duma rapariga estranha, a expressão dos olhos, a plenitude da boca.» Corte-se-nos a respiração ao sentir esse retrato. Sem dúvida Praga não era lugar para Kafka. A cidade arrumada e casta não era lugar para ele, que é uma labareda, uma doença infecciosa, um condutor do Eros de profundas combinações do mal, do génio, do terrível amor em que arde até à morte. «Querida Minze… parto amanhã para Murano. O que a coisa tem de melhor é que parto sozinho…” Ele sabe que junto dele ninguém está em segurança; ele arrasa tudo em que toca. Max Brod não é um amigo, é um pretexto para uma carta e aquela férrea natureza de abnegação que é a dele, Kafka. «Não é a vigilância mas a abnegação que constitui a primeira condição dum escritor.» É um santo, apesar da sua declaração de que «a existência dum escritor é um argumento contra a alma, porque a alma, com toda a evidência, deixou o verdadeiro eu para se tornar escritor somente, ela não pôde ir mais longe.»

Não há em toda a literatura um conhecedor da alma como Kafka. Ele sabe, ainda que o pergunte, que a separação do eu enfraquece a alma; ou seja, o que se chama a alma, o perder-se na paixão dos outros e dos elementos, neve, vento, tudo o que está impregnado de sentimentos. «Odeio tudo o que não se refere à literatura». A literatura é «um sucesso da solidão», e por isso, ele precisa de solidão. Não tem nada de trágico, é um facto apenas. «As conversas aborrecem-me, mesmo se se referem à literatura, fazer visitas aborrece-me, as alegrias e as tristezas das pessoas da minha família aborrecem-me até ao fundo da alma. As conversas tiram a tudo o que eu penso, o peso, a seriedade, a verdade.»

Que faz ele em Praga? Faz as malas, compra um bilhete só de ida, deita um olhar distraído à Praça Velha cujas casas conhece de cor, as suas janelas, os seus telhados. Ainda bem que há pessoas assim, algemadas à sua sombra!

No cimo da escada da Biblioteca Municipal há um monumento aos livros, uma torre feita com livros colados entre si. Uma abertura oval deixa-nos ver o interior que, por efeito de um espelho, cria a ilusão dum abismo. Entrar nessa cavidade era o propósito de Yves Callewaert. Eu não lhe disse que detesto os livros como efeito, como tentativa de lhes dar uma alma. Assim juntos, usados, constrangidos, dão-me a impressão de uma epidemia, dalguma coisa de contagioso. De resto, dentro de poucos anos, estão sujos e a torre terá de ser demolida. Eu parto à procura dum ascensor e vou com Zuzana para o café da Biblioteca. O dia está claro e a Primavera anuncia-se. Talvez haja violetas debaixo da neve e os sulcos dos skis e dos veados vão sendo apagados pelo vento da Primavera.

Ao sábado saímos de Praga para fazer uma excursão de feriado. Os rios estão gelados ainda e as florestas densas e silenciosas fazem-me pensar em Balzac e na sua condessa polaca. Ele imaginava-se a negociar com madeiras, fazendo chegar a Paris os troncos por caminhos de ferro, o que decerto fazia rir a senhora Hanska e a filha, às gargalhadas.

Porque casou ela com Balzac não se percebe. A viuvez é má conselheira, e as mulheres gordas encaram o casamento como uma forma de alimentação. Eu estou prestes a partir, o jantar é uma despedida. Come-se bem, a minha sopa de peixe, ainda que servida numa canoa de loiça, sabe maravilhosamente. Ao meu lado, um casal, um negro e a jovem esposa, estão também a jantar. Ela converteu-se à mania europeia das cruditiés, e o velho provérbio «não comas cru» deixou de servir. Também ela tem diante uma bacia cheia de alface e come com prudência a salada. «No próprio escudo de Saladino», penso, a rir comigo. Uma das coisas boas do mundo é rir-se a gente consigo mesma. Kafka fazia isso, tenho a certeza.

No momento de sair, um acontecimento: passo rente à mesa dos nossos vizinhos e cumprimento o senhor negro, que me corresponde. É um homem de fortuna, vê-se logo. Bebe apenas um pouco de vinho e tem o ar de quem não quer aproximações com ninguém. Mas o meu sorriso desarmou-o. Sorriu também, duma maneira calorosa que não durou um segundo. E o mundo desabou, rodou, nesse momento, criado de novo como por um toque de mágica. Lembro-me das palavras de Senghor: «A emoção é negra, assim como a razão é helénica.» Um sentimento de receio desdenha da verdadeira natureza do negro, que é sobretudo emoção que não se sente triste perante a eternidade, ao contrário de Kafka, o perfeito caucasiano. «Eu devia saudar a eternidade e fico triste quando a encontro. Graças à eternidade eu devia sentir-me perfeito e sinto-me abatido», diz Kafka. Esse abatimento, como ele diz, não significa abatimento mas insaciabilidade. O branco é insaciável, o negro é satisfeito no seu corpo e na sua alma. Foi isso que eu vi num relance apenas contado por uma fracção de segundo, no sorriso do negro que acompanhava a sua jovem esposa comedora de salada. Era inevitável, no nosso mútuo desconhecimento, que isso fosse um encontro memorável.

Saímos para a rua, a neve desprende-se como uma carícia sobre a avenida Parizska. Felícia disse: «Eu devia… sentir». É uma ordem que Kafka não distingue duma impostura mais. E assim se afasta da emoção e da vida.


Artigo publicado originalmente na edição nº 127 da revista Volta ao Mundo.

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