Num ano decisivo para a Europa, o analista de política internacional Bernardo Pires de Lima faz-se à estrada para percorrer as 28 capitais da União Europeia. Depois de muitas conversas, encontros improváveis e perceções surpreendentes, vai juntar os 28 ensaios num livro. Até lá, a Eurovisão será emitida aqui, na Volta ao Mundo.
Atenas, Grécia
Dois dias chegaram para que o manto branco que cobriu Atenas como há anos não se via desse lugar ao sol brilhante do Egeu, erguendo a densa malha urbana da capital grega numa autêntica enseada mediterrânica. Eu já tinha percorrido os clássicos caminhos da Acrópole, as ruelas que ligam a praça Sintagma ao bairro de Monastiraki, numa confluência de traços entre o românico e o bizantino, fundindo o religioso com o comércio de rua num constante encanto histórico. Confesso que não fui à procura de nada de especial em Atenas, apenas dela própria.
A sorte bafejou-me pela presença constante de amigos que me deslindaram os seus mistérios e comigo percorreram artérias menos evidentes, bairros menos convidativos, aproximando-me de uma cidade tão maltratada pela opinião que durante anos me foi chegando, feita bode expiatório dos males de uma Europa à deriva, tal como os milhares de refugiados que foram dando à costa em fuga desesperada das guerra mediterrânicas.
A tragédia grega tinha contornos desesperantes, mas o que vi ia para além disso: uma cidade que abraçava o sol depois da tempestade, que continha a raiva enquanto podia e a deitava à rua quando precisava, que enchia livrarias e museus, espetáculos e feiras de arte, restaurantes e esplanadas. Que se orgulhava da história milenar discorrida nos museus Benaki e Cycladic, das lutas imperiais, citadinas, independentistas, e que fez do bairro anarquista de Exarchia um dos pontos mais interessantes para desabrochar. Foi o que fiz à noite, entrando no Politécnico ocupado, ouvindo os lamentos de quem enchia as pequenas praças soturnas, jantando divinalmente no Ama Lachei.
A pujança artística e criativa de Exarchia manteve-me focado no lado cultural ateniense. Estar ao corrente da política e da economia gregas tem abafado o meu entendimento de outras dimensões da crise. A cultural, por exemplo, seguiu um rumo diferente, entusiasmante, mais independente dos círculos estatais, cosmopolita e aberta ao exterior.
O mecenato tem funcionado, as pessoas refugiaram-se nas novidades artísticas e os grandes eventos da primavera, como a Documenta, geram expectativa crescente e uma adesão prevista de 50 mil visitantes estrangeiros. O culto da Documenta é ainda alimentado pelo secretismo da agenda e dos participantes, num ciclo de espetáculos nas principais praças e bairros de Atenas entre abril e julho. Mas se há uma dimensão itinerante nos eventos culturais, a Fundação Stavros Niarchos tratou de assentar uma nova obra prima da arquitectura moderna na frente virada para o mar, em particular para o Pireu.
Sob a batuta de Renzo Piano, o pólo cultural mais interessante de Atenas vai albergar a ópera e a biblioteca nacionais, agrupando um espólio espalhado por vários edifícios históricos na cidade. Tive a sorte de visitar o centro cultural Niarchos antes da massificação popular, dissecando com um grupo de arquitetos os traços de Piano, sobretudo a integração que fez da zona verde e luminosa envolvente, trazendo o espaço público para dentro do edifício, numa harmonia urbanística perfeita. Esta é a minha Atenas: a da reconquista do seu espaço emérito.