Soldados islraelitas na Porta do Leão, entrada da Cidade Velha de Jerusalém que dá acesso à mequita de Al-Aqsa (@Ronaldo Schemidt / AFP)

Há 50 anos, Portugal escrevia a liberdade com cravos e paz. Há 50 anos que a defesa da palavra nos está no sangue. Então por que razão viajamos para destinos onde os conceitos de liberdade e de direitos humanos são, digamos, baços?

Era 2006 quando pisámos pela primeira vez as altitudes de Lhasa, a capital do Tibete. Só se entrava no território dominado pela China com agência contratada e guia atribuído. Voámos de Katmandu a caminho do teto do Mundo, que tivemos a sorte de apercebemos antes de chegar, da janela do avião. O Evereste, magnânimo.

Estava cumprido o primeiro desiderato da viagem: vê-lo. Haveríamos de lhe subir as costelas até ao campo base de Rongbuk, segundo desiderato. Éramos jovens, a infinitude das paisagens tibetanas enchia-nos os sonhos, juntamente com aquela raiva incontida da juventude ocidental contra Pequim, queríamos também ver como era isso da dominação de um sobre o outro, até porque, pelo caminho, passáramos por McLeod Ganj, em Dharamsala, nos Himalaias indianos, lar do Governo tibetano em exílio, todos nós éramos sentidos em ebulição. Olhando aquele manto branco eterno, revisitávamos os últimos dias e afigurava-se difícil imaginar tudo o que estava em causa debaixo daquela pureza alva.

O pouco mais do que rapaz que tivemos a sorte de receber como guia foi uma bênção. Moderno, inglês perfeito, bem-disposto. Só a centenas de quilómetros de Lhasa – e com o cuidado de garantir que o motorista não estava por perto – ousou meter a mão pela gola da camisola e puxar o fio que lhe víamos brilhar junto ao pescoço. Abriu os dedos para deixar aparecer uma medalha com fotografia: Tenzin Gyatso, o 14.º Dalai Lama, fugido do Tibete aquando da anexação por Pequim, em 1959. O jovem sabia que estava a correr um risco. A liberdade de expressão era uma miragem na sua Lhasa com palmeiras metálicas e centros comerciais chineses a rivalizar com as luzes do gigantesco Potala.

Mulheres em trajes tradicionais fotografadas durante uma visita de imprensa organizada pelo Governo chinês a Lhasa, no Tibete (@Hector RETAMAL / AFP)

Regressámos a Lhasa, desta vez de comboio pelo planalto tibetano, vindos de Xining, na província de Qhinghai, em 2018. A noção de liberdade tinha piorado. Os levantamentos populares de 2008 apertaram a repressão e as imolações de monges que marcaram os anos seguintes não ajudaram. Havia checkpoints em todo o lado e já só se entrava no sagrado Jokhang acompanhado. Nenhum jornalista podia visitar o Tibete. Omitíramos esse facto no pedido da autorização. Revivíamos a viagem do ano anterior, a Israel e à Palestina. Militares sisudos, quando não agressivos, a revistar documentos e mochilas. Pouco depois, para norte, o alvo passava a ser o povo uigur.

Houvera antes e seguir-se-iam viagens por esse Mundo onde a liberdade se escreve de outro modo, seguramente diferente daquele que Portugal escreveu faz este mês 50 anos. Várias Áfricas, Síria, Uzbequistão, Mauritânia, Iraque, Paquistão, Tajiquistão e a wishlist sempre a crescer, o Afeganistão e a Arábia Saudita na mira, porque sabemos, por experiência, que os regimes coercivos ou ditatoriais reinam em territórios com gente dentro.

Mas aí surge o velho dilema. Viajar até eles terá sido caucionar regimes para os quais os direitos humanos têm um valor muito diferente daquele que no Ocidente se lhes atribui? Terá sido procurar entender a vida numa parte do Mundo onde a liberdade é um conceito privado? Terá sido para, de certa forma, ajudar as populações com o que por ali gastamos e com o que delas podemos contar no regresso? Temos a nossa resposta. Privada como a liberdade deles. Mas procuremos a resposta de quem lida de perto com a violação dos direitos humanos.

Turistas no velho souq (mercado) de Jeddah,um dos destinos sauditas mais visitados (@Turismo Arábia Saudita)

Pedro Neto, diretor executivo da Amnistia Internacional Portugal, recusa a rejeição pura e simples das viagens para países demasiado afastados de Abril. “Viajar até estes países é aceitável de qualquer maneira. Nem vou apelar a qualquer boicote. Pode ser só por lazer, não tem mal nenhum. Ou para denunciar ou melhorar a consciência. Também não tem mal nenhum. Agora, importa alertar as pessoas para que não sejam inconscientes nem falsos inocentes. Para que procurem não alimentar regimes opressivos.”

Ora, nem sempre é fácil saber como. “Por exemplo, temos alertas para sítios nas plataformas de reservas de alojamento nos Territórios Ocupados palestinianos, porque é importante perceber a quem se dá o dinheiro, se se valoriza a ocupação ou se se ajuda as comunidades locais, porque se o alojamento está num colonato está a ajudar-se o colono, a ocupação. Em Belém, muitos palestinianos vivem do turismo, com os seus restaurantes, o seu artesanato, o seu alojamento. É possível escolher opções respeitadoras dos direitos humanos e ajudar estas pessoas.”

Recordamos, a propósito, um dos hostéis mais especiais por onde passámos nesse périplo pela Palestina. Ficava no topo de um edifício de Ramallah, tinha vista aberta até Jerusalém e chamava-se, desafiante, “Área D”.

Desde os acordos de paz de Oslo, os Territórios Ocupados estão divididos em áreas – A, B e C – conforme o direito que os palestinianos têm sobre elas. A área A equivale a 18% dos territórios e está sob controlo total da Autoridade Palestiniana. A área B é de controlo civil palestiniano mas segurança conjunta com Israel. Ocupa 22% dos territórios. A área C está sob controlo total de Israel e equivale a 60% do mapa palestiniano: inclui colonatos, áreas estratégicas, áreas adjacentes a Israel e… estradas.

No Walled Off Hotel de Belém, virado para o muro, as obras de Banksy mostram a crua realidade dos palestinianos (@Ahmad Gharabli / AFP)

O hostel, claro, era palestiniano puro e organizava excursões a Hebron e a aldeias mártires, mas também ao Mar Morto e às montanhas. E estava adornado com restos de confrontos, balas de borracha, granadas, uma parafernália em forma de murro no estômago. Na mesma linha, o hotel montado pelo artista de rua Banksy em Belém é outra forma de conhecer os locais e apostar neles. Intitula-se The Walled Off Hotel (corruptela de Waldorf), é gerido por palestinianos, clama ter “a pior vista do Mundo”, encerra obras do britânico e um museu onde se conta a ocupação e a culpa dos ingleses no devir desta parte do Globo. É, acima de tudo, imperdível.

Evitar grandes cadeias hoteleiras internacionais pode ser um primeiro passo, diz Pedro Neto. Porque “os donos são colonos ou estrangeiros” e nada ou muito pouco reverte para os locais. E não é só nesses países. Mesmo “em Portugal, o único retorno destas cadeias está nos impostos que pagam e os salários – baixos – de quem lá trabalha”.

Depois, há a outra vertente da viagem para um destino pouco ou nada livre, pelo menos aos nossos olhos: o risco para determinados grupos sociais, como as mulheres (no Afeganistão, no Irão, na Arábia Saudita), a comunidade LGBT (em muito Médio Oriente ou na Federação Russa), os defensores dos direitos humanos – “Eu sei que corro riscos se for a determinados países”, diz o dirigente da Amnistia Internacional. “Claro que devemos aculturar-nos, daí ser necessário ter as devidas precauções nesse sentido.”

Norte-coreanas em Pyongyang,nas celebrações do Dia Internacional da Mulher (@Kim Won Jin / AFP)

Por fim, é importante “não nos deixarmos enganar”, porque alguns países esforçam-se por atrair turistas e conduzi-los para o belo e o bom. A Coreia do Norte será, porventura, o caso mais claro. Visita-se em grupos organizados com antecedência, entrada pela China e roteiro rígido. O Turquemenistão, por exemplo, só permite estadas de cinco dias e com restrições. E a Arábia Saudita, novo enfant terrible do turismo, investe milhares de milhões no setor, oferecendo luxo e experiências inovadoras porquanto se tratava, até 2019, de um território virgem de turistas. E investe, também, por essa via, fortunas “na limpeza da imagem pública”. As contratações milionárias de futebolistas, a organização de eventos desportivos internacionais e de eventos económicos, etc., etc., vão nesse sentido de lavagem. “E muitas vezes usando portugueses, que deviam ter uma palavra de consciência e dizer a realidade que se vive por lá, ser uma voz efetiva na defesa dos direitos humanos…”

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