Barquinho de Babel

Crónica de viagem
Ricardo Santos nas Ilhas Galápagos

Éramos 12. Num barco. Quatro cabinas para oito passageiros e uma camarata para três tripulantes e um guia. À volta, a terra não se avistava. Só a noite e o mar negro das ilhas Galápagos. E um motor que não funcionava. Seria perto da uma da manhã. O barco estava à deriva. Uma japonesa, uma inglesa, dois suíços, um par de holandeses e uma dupla de portugueses. Quatro equatorianos completavam o plantel.

Um deles estava na água, emergindo e submergindo, com máscara, tubo e uma chave de fendas. Ia por tentativas, procurava a peça certa para desapertar. El Comandante, o líder da embarcação dava instruções. «Está tudo bem», dizia Freddie, o guia – «Podem dormir descansados, em pouco tempo estará a funcionar.» E o barco à deriva.

A japonesa não falava espanhol. Inglês, pouco e francês nem pensar. A inglesa não se aventurava mais do que para dizer «No tengo mas hambre» quando o estômago se enrolava nas voltas da ondulação. Os suíços falavam francês entre eles e inglês com os restantes. Os holandeses tinham a mesma perfeição no inglês e no idioma próprio. Em português sabiam dizer «Pão de queijo». Tinham chegado do Brasil… Nós, os portugueses, estávamos à vontade em todas as línguas do barco. Mesmo no japonês arriscávamos comunicar, à base de Arigatos, Sayonaras e Pizzicato Five. Em holandês, Van Basten e Ruud Gullit quebravam o gelo.

«Diz-lhes que está tudo bem», dizia-me Freddie, que dava os primeiros passos no inglês. Já lhe fazíamos as traduções simultâneas sempre que precisava explicar a história das ilhas, as espécies endémicas, as precauções a ter naquele santuário da natureza. Nos briefings diários, era a nós que perguntava como se dizia isto ou aquilo, em francês ou inglês. Cumpríamos o nosso legado histórico de intermediários culturais. Era connosco que, em espanhol, partilhava as histórias sem censuras linguísticas ou temáticas. Éramos já dois deles. Suficientemente cúmplices para perceber que não estava tudo bem, que estávamos à deriva. Até que o motor voltou a funcionar. «Éberything ólright!», exclamou Freddie com um sorriso enquanto nos piscava o olho.

Ricardo Santos, editor
[email protected]

Crónica publicada originalmente na edição 207 da revista Volta ao Mundo.

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