No início de agosto, a cidade irlandesa de Galway recebe um extraordinário evento: as Galway Races. É a mais ocidental corrida de cavalos da Europa e um dos maiores acontecimentos do mundo a juntar homens, cavalos e apostas. José Manuel Diogo foi lá com os filhos e tentou a sua sorte.

Texto de José Manuel Diogo
Fotografias Direitos Reservados

Há três dias que em vão tentávamos marcar um hotel em Galway. Esgotado, esgotado, esgotado. Hotels, Booking, Trivago. Nada. Só nos arredores e a preços de Paris. A cidade irlandesa, atirada ao Atlântico, durante séculos abandonada pelos políticos, sobretudo por causa da resistência e teimosia dos seus líderes face ao domínio inglês – o que lhe custou empobrecer enquanto outras cidades como Dublin, Belfast ou Limerick, floresceram – parecia estar no centro do universo. Ora isso não acontece todos os dias numa terra com apenas 65 mil habitantes. Alguma coisa havia de ser. Mas o quê?

Fomos ver. Seguimos a rota traçada em família, pela Irlanda, onde o caminho era para Galway. Haveríamos de saber o porquê desta escassez hoteleira quando estivéssemos mais perto.

Vínhamos de Londonderry, a viagem fazia-se longa, a paisagem a inebriar-nos os olhos há horas. A costa ocidental da Irlanda é uma vertigem verde e os efeitos de exposição prolongada podem ser fatais. Por isso, mesmo antes de chegar, não soubemos perceber se era verdade ou delírio o primeiro habitante que encontrámos em Galway.

Em plena praça da Catedral, ziguezagueando à nossa frente, um ciclista rola na estrada. Como nos filmes de mágicos de Hollywood, usa como capacete um chapéu de alumínio em forma de funil. Como nos livros de fadas. Seria seguro estar aqui? Seria esta uma cidade segura? As ruas recomendáveis? Ou seria o homem um verdadeiro «maluco de funil», louco diplomado, como esses que se fazem anunciar noutras narrativas. Provavelmente era apenas coincidência, algum habitante local enlouquecido, daqueles a quem todos acham graça lá no sítio. Paramos o carro no único estacionamento que encontrámos, num silo na periferia. As ruas estão cortadas. Não é longe, quinze minutos a pé até ajudam a desfazer as dobras de duas horas e meia de volante à direita e estrada à esquerda pelas estreitas estradas que nos traziam do Norte da ilha até Galway.

A Wolfe Tone Bridge, que tínhamos de atravessar para chegar ao centro, estava num completo e inusitado silêncio, apenas se ouvia o som dos passos sobre as lajes dos passeios. O rio Corrib – um dos mais curtos da Europa, com apenas 6 km –, nascido do lago com o mesmo nome (o segundo maior da Irlanda), funcionava como uma espécie de barreira sonora. Acabada a travessia começava a sentir-se a primeira agitação, um vozear distante, logo um ruído mais forte. Devia ser por ali. E era com certeza uma festa. Antes da primeira esquina já o som era maior que tudo o resto.

Em Quay Street tudo se fez diferente. Galway inteira estava ali. Uma a seguir à outra, as ruas rasgavam a cidade desde o mar até ao velho centro, quatro ruas em fila indiana, apinhadas de gente: Quay Street, High Street, Shop Street, William Street. Do antigo cais portuário, até às estátuas sentadas dos escritores Wilde e Vilde, o Oscar irlandês e o Eduard, estoniano, uma multidão de foliões entupia o centro antigo da cidade de Galway. Mas não eram foliões quaisquer, não eram notívagos à procura de um bar, nem turistas descontraídos. Era uma festa de gala. Mulheres de vestido de noite, homens de fato completo, gravatas caras, lenços de marca e muitos, muitos chapéus. Abeiramo-nos do primeiro yuppie-gentleman-smilling-guy, e perguntamos: «Mas o que é isto?» Ele respondeu num sorriso sardento, desenhando um gesto largo com uma mão enquanto apertava com a outra uma senhora vestida de vermelho: «– Mister! São as corridas!»

Era uma festa de gala. Mulheres de vestido de noite, homens de fato completo, gravatas caras, lenços de marca e muitos chapéus.

Galway Races: Irlanda

Os mais velhos lembram-se – e o YouTube lembra os mais novos – daquele anúncio de TV de uma marca de cerveja, a Carlsberg, que mostrava um casal nas corridas de cavalos. Um casal assistia a uma corrida, o som do galopar dos cavalos ouvia-se aumentar, chegar perto. Ela, uma bela mulher, loira, elegante e jovem, um sorriso fantástico, chapéu de abas e luvas brancas, segurava os bilhetes das apostas numa mão. Olhava apaixonadamente para o marido, que, de binóculos na mão, seguia o movimento dos cavalos ao mesmo tempo que protegia a mulher. O burburinho crescia na multidão que os circundava e as palavras tornavam-se impercetíveis. A certa altura, ela deixa de poder ver a pista porque todos já estão de pé. Tudo se precipita, meta cortada e num instante tudo está terminado. Uns dão vivas, há lamentos no chão, cupões pelo ar, alegrias e tristezas. Aí, a mulher de branco, impaciente, pergunta ao companheiro: «E nós ganhámos? Ganhámos?»

Ele também não sabia, deixou de acompanhar a corrida quando os binóculos chocaram com um anúncio da tal cerveja que imediatamente se fez mais importante. «Ganhámos?», insistiu ela. Ele respondeu tão distante como se os cavalos, as apostas, a incerteza e o sprint final nunca tivessem tido qualquer importância naquela tarde. Probably, respondeu. Nas corridas de cavalos, é assim: a festa conta mais.

Foi aqui que aterrámos, o mistério estava desfeito. Tudo fazia sentido. Era a semana das corridas. E em Galway essa é a semana mais importante do ano. Tudo começou com a famosa Galway Plate, a corrida original que remonta a 1869, mas, um século e meio depois, as corridas continuam a ser um acontecimento de modernidade, moda, glamour, alegria e integração social. O Galway Races Summer Racing Festival (até cansa ler o nome oficial) corresponde a 7 dias de intensa euforia que enche a cidadezinha irlandesa. Ao todo são 52 corridas onde os cavalos a correr e a saltar são importantes – o bichinho das apostas é o motor que junta toda a gente – mas estão longe de ser tudo. Dia após dia os temas sucedem-se num programa capaz de tirar o fôlego a um puro-sangue.

Em prémios e apostas movimentam-se mais de dois mil milhões de euros. Em apenas sete dias. Não está nada mal.

Sentimo-nos como se estivéssemos, ao mesmo tempo, no foyer de um teatro à espera da ópera, num festival de verão à espera da estrela rock, num desfile de moda à espera da top model, numa festa de estudantes à espera de cerveja, num estádio de futebol à espera do golo, na toirada à espera da pega ou num casamento à espera da noiva. Porque há euforia, música, clamor, fúria e até uma inesperada alegria iniciática,

Os últimos dois dias, sábado e domingo, são os Dias da Família. Os bilhetes são mais baratos, as crianças não pagam. Estes dias de cavalos mais fracos e jockeys mais gordinhos, servem apenas para explicar aos mais pequenos duas coisinhas simples. A primeira, porque é que o papá e a mamã estiveram uma semana inteira fora de casa, a chegar tarde e a más horas; planta no coração dos petizes o gosto por aquele ambiente único. Quinta e sexta-feira são os dias mais importantes. Os dois dedicados às mulheres.

Quinta-feira é o Ladies Day, junta os melhores conjuntos e os mais desejados prémios. Neste dia os cavalos não correm furiosamente contra o risco da meta. Evoluem com elegância e arte numa competição de obstáculos, a Galway Guinness Hurdle Handicap, com o prémio de 300 mil euros para o conjunto vencedor. Paralelamente e durante todo o dia, um júri anónimo procura e escolhe, por entre a multidão vestida a rigor, as mais bem vestidas.

Para participar no The Best Dress Lady não há nenhum procedimento formal, apenas é preciso cair nas boas graças dos juízes. Os prémios são muito relevantes: 10 mil euros para a mais bem vestida e 2 mil para o melhor chapéu, além da honra e da fama para gozar durante um ano inteiro. As premiadas nos anos anteriores ganham destaque na comunidade e transformam-se em verdadeiros oráculos onde as mulheres procuram inspiração e conselhos de beleza. Há ainda outro dedicado ao chapéu mais extravagante, e o dia vermelho em que todos, desta vez homens incluídos, podem ganhar prémios pela originalidade.

Mas, e as corridas? São elas e as apostas que fazem mexer a pequena Galway. Toda a festa se movimenta à volta das apostas. Ao todo são mais de 150 mil pessoas – mais do dobro da população habitual – que vêm escolher o cavalo certo. Em prémios e apostas movimentam-se mais de dois mil milhões de euros. Em apenas sete dias. Não está nada mal.

Não é preciso perceber muito de cavalos para conseguir divertir-se nas apostas. Na base de cada uma das duas bancadas – modernas, envidraçadas, cheias de restaurantes, bares e zonas VIP – existe um centro nevrálgico das apostas. Uma espécie de casino, cheio de ecrãs onde aparecem escritas as probabilidades de cada conjunto – cavalo e cavaleiro –, balcões de apostas e de bebidas, mensagens dos patrocinadores, promotoras dos patrocinadores e, claro, um imenso frenesim.

Ao mesmo tempo a página oficial das corridas atualiza as vantagens e desvantagens de cada alazão e respetivo cavaleiro: de mazelas antigas a intervenções cirúrgicas, maternidade e paternidade, até às indisposições do dia. De tão fácil se mostrar não fazia nenhum sentido, mesmo sem grandes conhecimentos em matéria de cavalos e um desconhecimento total dos campeões a concurso, que esta história acabasse sem uma aposta.

Nos quadros perfilava-se a sétima corrida do dia. As hipóteses davam como vencedor um conjunto com historial impressionante, mas mais desafiante parecia um belo cavalo negro, de seu nome Nonetheless que, segundo o livro oficial das corridas, no presente ano tinha melhorado sempre a sua classificação. Na última prova tinha sido terceiro. Cada euro apostado oferecia seis em caso de vitória.

Uma conversa de circunstância com um bonacheirão irlandês, que também se preparava para jogar, fez-nos decidir por cinco euros na vitória do Nonetheless. Na bancada, entre o vento fresco de uma tarde de fim de verão que parece outono, as mãos das senhoras de vermelho seguravam com elegância os espampanantes chapéus.

O tiro soa. Os cavalos correm. A multidão agita-se. Há uma emoção quase poética quando todos se encaminham para a meta. O primeiro a chegar? Nonetheless.

Ganhámos 30 euros e ficámos a lamentar não ter apostado uma nota maior.


O especialista em comunicação
José Manuel Diogo, autor e colunista português, especialista em media intelligence, informação e comunicação, estudou Jornalismo e Engenharia Mecânica na Universidade de Coimbra. Publicou os livros As Grandes Agências Secretas e Os Discursos Que Mudaram o Mundo, coletânea de discursos sobre media e poder internacional. É ainda autor de uma biografia do fundador da Apple, Steve Jobs, com o título iMe, a Vida de Steve Jobs.
Na imprensa portuguesa escreve semanalmente no Jornal de Notícias e quinzenalmente no Diário de Coimbra.
Esta não é uma estreia na Volta ao Mundo. Em setembro de 2015 já nos tinha dado dicas preciosas sobre como viajar em Itália com crianças. No caso, os seus dois filhos, os mesmos que o acompanharam nesta ida às corridas na Irlanda.
Com um gosto especial pelas viagens e pela escrita, José Manuel Diogo já está a preparar a próxima aventura.

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