É uma das caras mais conhecidas da televisão portuguesa e esteve à frente de programas como Top +, Chuva de Estrelas, Caça ao Tesouro, Operação Triunfo ou, mais recentemente, Aqui Mandam as Crianças. É também co-autora da série documental Príncipes do Nada ou do documentário Dar a Vida Sem Morrer. Estudou dança no Conservatório Nacional de Lisboa, jornalismo no CENJOR e teatro e cinema em Londres. Já trabalhou em rádio, já pisou muitos palcos, escreveu canções e fez cinema. Mas um dos papéis mais importantes da vida de Catarina Furtado começou em 1999, quando foi nomeada Embaixadora da Boa Vontade do Fundo das Nações Unidas para a População.
Entrevista de Cláudia Arsénio e Paulo Farinha
Oiça aqui a entrevista, emitida pela rádio TSF, a 30 julho de 2019
Qual o país que visitou enquanto embaixadora que mais a marcou?
Enquanto embaixadora e enquanto documentarista do Príncipes do Nada, um programa para a RTP… o que mais me marcou, necessariamente por aquilo que estava a reportar (questões ligadas à violação dos direitos humanos, desenvolvimento, saúde e educação, a igualdade ou desigualdade de género)… eu diria que, por diferentes motivos, é o Sudão do Sul. É um país que tinha acabado de ter a sua independência e teve um impacto muito forte em mim porque foi imbuída por uma esperança que vinha justamente da independência. No meu entender, isso teria consequências muito positivas em relação aos direitos daquelas pessoas que estão em conflito há muito tempo. Vi o medo na cara deles, vi a agressividade também, vi uma necessidade óbvia de haver uma intervenção qualquer. E depois percebi, dada a atualidade, que nada se resolveu, antes pelo contrário, e que o Sudão do Sul é neste momento um dos casos gravíssimos de designadas sociais e de conflito.
Já viu muita coisa. Vítimas de mutilação genital feminina, catástrofes, órfãos, refugiados. Frequentemente fala sobre o que viu e sobre a sua experiência no terreno, é convidava para palestrar nos mais diversos países. Como é que consegue desligar disso tudo, quando precisa de o fazer?
Acho que esse é um caminho que eu vou ter de aprender. Não consigo desligar. São 19 anos a reportar estas realidades em muitos países, da Índia ao Haiti, Indonésia Timor, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné Bissau, Moçambique, Gana, Sudão do Sul. Enfim, é impossível desligar. Tenho de aprender. A viagem recente que fiz, em paz e em férias, foi à Índia, e foi lá que eu percebi que tenho de arranjar uma estratégia qualquer que me ajude nessa capacidade de desligar para poder continuar a avançar. Mas ainda não consigo desligar. Aliás, há uma parte nisto que é muito interessante, que é esta: eu muitas não quero mesmo desligar. Eu vou à procura das memórias, das histórias, para poder continuar a empurrar a ação. Para continuar a incentivar as pessoas a quererem saber mais sobre as situações e a poderem ter a oportunidade de se manifestar insurgir, apoiar. E ir, também. Mas às vezes é duro, porque se veem coisas que não se querem ver. E ouvem-se coisas como “Catarina, faz aqueles comentários… mas aquilo é muito forte e eu confesso que desligo porque não consigo olhar”.
E isso é exatamente o contrário do que pretende.
Sim, é mesmo o contrário do que pretendo. Às vezes fico a pensar: “como fazer para que as pessoas queiram, de facto, saber?” Claro que depois também há aquele sentimento de impotência que acontece depois vemos um documentário. Há pouco tempo entrevistei o Prémio Nobel da Paz, o ginecologista congolês Denis Mukwege e fui ver o documentário City of Joy. E é um murro no estômago. As mulheres são usadas como armas de guerra, são violadas, são vítimas de coisas horríveis. E depois partilhei a entrevista e houve muitas pessoas que me perguntaram: “E agora?”. “O que podemos fazer?” Às vezes o que não sabemos é o que fazer, mas eu acredito que estar preocupado, partilhar e falar sobre estas coisas vai necessariamente levar a algum lado. Não falar e virar a cara é que não leva mesmo a lado nenhum, a não ser a um isolamento que estamos a viver. Como é possível o mundo ainda estar assim?
E portanto, ao fim de 19 anos como embaixadora, o balanço que faz é ainda de esperança?
Ainda, sim. Porque nestas situações extremas todas eu vi muita gente morrer. Vi muitas mães morrerem por causas absolutamente evitáveis. Vi muitas meninas a morrer por questões tão idiotas como o paludismo (que hoje é perfeitamente controlável), porque o pai não as trouxe para o hospital e o pai tem a última palavra. Mas também vi muita gente ser salva. Também vi muitas organizações não-governamentais – nomeadamente alguns organismos das Nações Unidas – a atuar com eficácia. E, portanto, se formos olhar para os ODM, os Objetivos de Desenvolvimento do Milénio, ou para os ODS, Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, vamos verificar que efetivamente temos um mundo terrível mas que nos últimos anos muitas conquistas foram feitas, nomeadamente ao nível da educação e da saúde. Hoje há mais raparigas a frequentar a escola mas há muitas, milhares, que não têm acesso nem têm esse direito garantido. E há menos gente com fome do que havia há uns anos. Mas há muito mais refugiados, por exemplo. E não se pode, de todo, virar a cara a isto. Aliás, agora vou fazer uma série do Príncipes do Nada só sobre refugiados.
Já regressou a algum país onde tenha ido primeiro como embaixadora, mas dessa vez sem ser em trabalho para as Nações Unidas? Em passeio, de férias…
Sim, à Índia.
Essa viagem foi especial, não foi? Foi em busca de origens.
Foi. Foi muito especial. Eu senti uma necessidade enorme de voltar à Índia porque, a par do Sudão do Sul, foi dos países que mais me marcou pela negativa. Eu fiquei verdadeiramente angustiada, para não dizer indignada, com os contrastes. Isto é um lugar comum, porque quem conhece mais ou menos a Índia sabe que é um país de contrastes. Tem o lado ostensivo do dinheiro e da riqueza e do outro lado tem a pobreza extrema. Quando fui à índia fazer o Príncipes do Nada eu reportei crianças a beber xixi porque não tinham água. E sempre com uma ideia muito dura da Índia, mas não dos indianos. E agora quando lá voltei queria apaziguar esta ideia e queria ir ao encontro das minhas raízes. O meu bisavô (e o meu trisavô antes dele) era de Goa e eu queria muito ir conhecer. A minha mãe infelizmente não pode viajar, por questões de saúde, e era um dos sonhos dela encontrar essas raízes. Então, eu fui à procura. E o que foi mais maravilhoso é que eu andei em Goa apenas com uma fotografia e consegui encontrar a casa onde o meu trisavô nasceu. E deixaram-me entrar e estive lá e pude fotografar a casa atualmente. E fazer aquelas montagens…
… o antes e o depois, como era e como é.
Sim. Foi incrível. Essa viagem foi incrível. Eu acho que todas as pessoas que têm vontade de ir à Índia o devem fazer com base em literatura. Leiam os livros. Os grandes escritores que escreveram sobre a Índia, como é que o país nasceu, quem é que lá esteve, quem é que para lá foi – e foram tantos, incluindo os portugueses., como todos sabemos. E assim se percebe uma série de coisas e assim se justificam outras tantas. Não que não se devam continuar a condenar as violações de direitos humanos, claro. É o país onde continua a haver feticídio. Mata-se o feto que seja feminino, porque o valor do homem na Índia é maior. As castas já estão abolidas por lei, mas em determinadas regiões elas ainda existem. Mas visitar e conhecer é uma forma de nos apaziguarmos com algumas coisas, não deixando de continuar a condenar e a alertar para outras.
Levou o seu marido e os seus filhos nessa viagem. Costuma viajar muito em família?
Costumo. E costumo viajar só com os filhos. Coincidentemente, o João [Reis], como ator, tem sempre ou teatro ou novelas nas férias da Páscoa, que é quando eu tenho mais disponibilidade. Não sei bem porquê, nunca analisei isto, mas em televisão, nas férias da Páscoa, consigo tirar sempre uns dias. E ele não. Portanto, desde há muito tempo que me habituei a ir sozinha com eles. E fomos para sítios como Espanha, Cuba ou Punta Cana. Mas houve um dia em que eu achei que os devia levar a um sítio que fosse coerente com tudo aquilo que eu tenho pregado em casa e partilhado. Então fomos para Dakar [Senegal]. E toda a gente dizia que eu fazia mal e como é que eu ia fazer aquilo, com eles tão pequenos, etc. Fartei-me de ouvir comentário desses. Mas correu tudo bem.
Que idade é que eles tinham?
Foi há quatro anos, o João devia ter 7 e a Beatriz 9.
E os Açores? Foram também um destino que fez em família?
Fiz em família e fiz em trabalho. Fiz com as Sete Maravilhas, um projeto da RTP, e já fiz muitas vezes em família. E, apesar de ser viajada, tenho dito que é dos sítios mais bonitos no mundo inteiro.
E onde é que nunca foi e gostava muito de ir?
Ao Japão.
Porquê esse fascínio? E por que é que nunca foi?
Não fui ainda porque é uma viagem longa e eu não tenho de facto muito tempo. São as obrigações da profissão, de que gosto muito. E não é fácil estar casada com um ator, trabalhar em televisão, ser embaixadora das Nações Unidas. Não é fácil conciliar as datas todas. Normalmente vamos para países mais perto. Esta viagem à Índia foi muito projetada e planeada com muita antecedência. O Japão leva também muito tempo, por isso é preciso planear bem para onde se quer ir. De certa forma, acho que a Índia e o Japão se complementam. Tenho a sensação que vou precisar disso. Fui para o lado mais espiritual da Índia, porque estava a precisar muito – para ver se ando numas rotações mais abaixo, menos acelerada. E acho que o Japão é capaz de me dar aqui uma razão maior, ainda que com aquele lado místico que também tem.
Oiça aqui a entrevista, emitida pela rádio TSF, a 30 julho de 2019