Macau é "ser levado pela multidão, entre fragmentos de cantonês e o cheiro de lulas secas espetadas num palito, folhas de carne de porco caramelizada, caixas de bolachinhas para acompanhar o chá" (Foto: José Luís Peixoto)

2020. Para mim, os primeiros meses da pandemia foram o choque, a tentativa de apreensão de uma realidade radicalmente nova, a necessidade de lidar com um quotidiano inédito. Depois, o verão foi encher o peito de ar, trouxe-me o desfrutar de pequenos prazeres fundamentais que, antes, existiam sem nome. Em todos esses meses senti falta das viagens, não apenas das que tinha marcado e foram canceladas, mas também das viagens com que sonho constantemente.
Neste ano de quarentenas e confinamentos, fui descobrindo formas de lidar com esta falta. Todas são imperfeitas, nenhuma delas substitui a liberdade e a experiência de estar lá, nenhuma delas oferece o mesmo infinito de possibilidades. Ainda assim, parece-me que vale a pena partilhá-las.

1. Vídeos na internet
Já se sabe que faltam muitos sentidos ao audiovisual. Um dos elementos de que sinto mais falta quando vejo vídeos de praias paradisíacas, por exemplo, é a temperatura. No ecrã, fica apenas o azul-turquesa, a dimensão estética, falta o sol tórrido e alguns incómodos imprevistos que também fazem parte de estar lá. Ainda assim, seja qual for o destino, um dos piores defeitos de muitos vídeos é o cliché. Não há nada mais contrário à experiência de viagem do que o banal, a idealização estereotipada. A internet está cheia de pores do sol, cocktails e imagens de drone. Prefiro outras opções. Uma alternativa são os vídeos de alta-definição com pessoas a caminhar pelas ruas de diversas cidades. Apenas isso. Quando tenho saudades de Manhattan, por exemplo, entro no youtube e faço uma busca por: manhattan street walk. Escolho Soho ou uptown, escolho dia ou noite, e lá inicio o meu passeio virtual. Se tiver vontade de passar pela Times Square, vou às câmaras em tempo real e fico a saber que horas são, se está a chover, quem anda por lá. O mesmo acontece com o cruzamento de Shibuya, em Tóquio, com a Avenida Niévski, em São Petersburgo, entre muitas outras possibilidades. Fico a olhar para pessoas que não imaginam estar a ser vistas em Portugal.

2. Rádios
Também através da internet, as rádios proporcionam uma curiosa experiência de evasão. Há a facilidade de ouvir rádios de ilhas do Pacífico, de países com idiomas que desconheço, mas nem sempre é preciso ir tão longe. Enquanto cumpro as minhas tarefas domésticas, pode ser bastante exótico estar a ouvir o anúncio dos preços de um minimercado em Vinhais ou de um stand de automóveis usados em Quarteira. Em concreto, aconselho a aplicação (e site) Radio Garden, que permite girar o Globo e selecionar um dos milhares de pontinhos dispersos pelos mapas, que correspondem a uma rádio desse local. Experimentem.

3. Instagram e outras redes sociais
A urgência da dopamina não permite grandes travessias. Seguir contas ligadas a viagens nas redes sociais é sobretudo uma forma de recordar sonhos bons e, assim, ajudar-nos a sonhar um pouco mais. Mesmo que grande parte da oferta seja os tais clichés, ajudar os outros a sonhar é uma tarefa meritória, com muito valor.

4. Ler e escrever
Ler esta mesma revista, por exemplo, mas também livros. Neste caso, devido à natureza da experiência não preciso de atualidade. Se estiver a ler sobre uma viagem no século XVIII, não me sinto menos transportado do que se estiver perante a descrição de uma viagem feita na semana passada. Creio que este meio, as palavras, tem uma ligação direta com a memória. Quando nos falam de um lugar específico, mesmo que nunca tenhamos estado lá, usamos as nossas referências para interpretá-lo, para fazê-lo viver em nós. Esse recurso é muito evidente na escrita. Neste tempo, escrever sobre viagens é uma forma potente de viajar, os estímulos são convocados aos sentidos e, afinal, pela força da memória, percebemos que ainda estão lá, ficaram gravados.
Estas são as minhas tentativas. No entanto, com frequência, tudo isto me faz pensar ainda mais nos lugares onde quero voltar assim que puder.

MARROCOS
Voltar a Meknés, a Fez, ao Atlas, a Ouarzazate, a Essaouira, como quando tinha vinte e poucos anos e, com os meus amigos, arranjávamos maneira de chegar a Algeciras, apanhar o barco, alugar um carro em Tanger e lançarmo-nos por esse país enorme. Os burros na berma da estrada, os sinais de stop em árabe, as brigadas de Polícia a fiscalizar a velocidade. Quando puder, quero atravessar centenas de quilómetros, comer tagine, beber chá de menta ao fim da tarde e regressar a Sidi Ifni, onde já fui muito feliz.

ÁFRICA DO SUL
Voltar a Joanesburgo pela quarta vez, aperceber-me de como esta cidade tem evoluído, de como as pessoas são cada vez mais livres depois de uma história tão sacrificada. Voltar também a Durban, recordo aquela frente marítima, chovia tanto quando lá estive, como será com sol? Voltar a encontrar os madeirenses que vivem em Durban, será que ainda se lembram de mim? Quando puder, quero sentir de novo o cheiro dessa terra, os churrascos infinitos e, por fim, hei de conhecer a Cidade do Cabo, compará-la com todas as descrições que já escutei.

MACAU
Voltar a Macau, estar no centro do Largo do Leal Senado, girar sobre o meu próprio eixo, como o planeta, e agradecer por estar novamente lá. Voltar a sentir o empedrado debaixo dos pés e seguir caminho, passar pela Igreja de São Domingos, ser levado pela multidão, entre fragmentos de cantonês e o cheiro de lulas secas espetadas num palito, folhas de carne de porco caramelizada, caixas de bolachinhas para acompanhar o chá. E voltar ao Mercado Vermelho, voltar ao Jardim Lou Lim Leoc, ao Jardim da Flora, subir outra vez ao Farol da Guia e ver tudo lá de cima, sabendo que tenho todo aquele mundo ali, à espera de ser redescoberto.

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