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Entre o Mar Negro e montanhas verdejantes coroadas de neve há um pedaço de História escondido que ajuda a compreender a diversidade turca. Bem-vindos ao nordeste de um território imenso.

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Que peso histórico carrega o património? O da sua origem, lá longe nos séculos? O da sua passagem pelo tempo? O da vida que se inscreve nas suas paredes?

A discussão é velha como as pedras e assaltou-nos, sem avisar, perante os incríveis frescos da gruta-capela do mosteiro de Sumela, pendurado periclitantemente (à vista, parece) numa encosta negra dos Montes Zigana.

Estamos no leste da Turquia, a cerca de 150 quilómetros da fronteira com a Geórgia e de 50 do Mar Negro, com os pés enfiados na neve num gigantesco templo greco-ortodoxo num belo vale do Parque Nacional de Altindere, e os ícones não têm olhos.

Para lá dos nomes de pretendentes à posteridade que julgam a sua escrita voraz mais valiosa do que a dita História, os ícones não têm olhos. Consta que arrancá-los às paredes e cozê-los em água a ferver é poção mágica para males maiores. Um xarope de água com cal e cor ancestral, portanto.

Serão estes ícones cegos um atentado à História? Ou a História inscrita no olhar deles? Sumela não nos dá respostas. Sumela expõe as dúvidas.

Sumela é o maior mosteiro ortodoxo da Turquia e é seguramente um dos mais belos do Mundo.

De novo a História, essa que a vida foi criando à volta de uma obra que parecerá sempre genial: Barnabas e Sophranius, dois monges gregos que não se conheciam, foram mandados até ali pela Virgem Maria, em busca de uma imagem dela pintada por São Lucas, carregada para aquelas montanhas de Trebizonda por anjos.

Cruzaram-se, descobriram o ícone e ergueram a capela à volta da gruta. Reinava Theodosius I, seria na década de 380 d.C..

A capela é a joia de todo o edificado, cuja História se perdeu nos séculos e num incêndio e que tem hoje paredes recentes à luz dos milénios.

O “fundador” acabou por ficar Alexius III de Trebizonda, herdeiro da dinastia dos Comnenos que revolucionou o Império Bizantino, reino do séc. XIV do qual data o aqueduto ainda de pé, e o mosteiro fez-se o que é hoje já no séc. XIX.

A imagem da Virgem Maria a quem é dedicado o mosteiro (Sumela, diz-nos Cengiz Altunas, o homem que nos acompanha nestas derivas, quer dizer mãe que protege) terá sido igual àquela que ainda preenche o teto rochoso da capela.

Na lateral, outro ícone da Virgem sentada olha-nos como nos olha a Gioconda, seguindo-nos os passos.

A técnica foi inventada por Da Vinci no séc. XVI, aquela Virgem de Sumela é do séc. XIV. Será.

Aí está a dúvida da História, do que é a História. É como a das gotas que pingam de 40 metros acima da pia sagrada que está no centro do mosteiro. Seria água sagrada e atraiu ali milhares de crentes enfermos, cristãos e muçulmanos, que a cura não tem religião.

Terão sido os mesmos a arrancar os olhos às imagens? Não se sabe. Sabe-se só que enriqueceram o mosteiro, ali depositando fortunas em oferendas durante séculos.

É fácil perder-se nas datas. Ficam as mais recentes. Até à I Guerra Mundial, Sumela esteve ativo. Nos tempos áureos, albergou 50 monges, foi seminário, teve missas para as 15 aldeias de montanha que dele dependiam.

Até que as orações se calaram, os monges voaram para a Grécia e a montanha negra se entregou ao silêncio. Era 1923.

Os livros da biblioteca de pedra seguiram para o Museu de Ancara e para a Santa Sofia de Istambul, ainda aquela majestade era só museu, ainda o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, não decidira devolver-lhe a condição de mesquita que fora durante o Império Otomano (fê-lo em 2020).

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A política tem destas decisões: em 2010, era ele primeiro-ministro, Erdogan autorizou a realização de uma missa ortodoxa anual em Sumela, a 15 de agosto.

A cerca de 50 quilómetros dali, na cidade de Trabzon, o partido antecipou-se ao seu próprio líder e devolveu a Santa Sofia local ao culto muçulmano em 2013.

De novo, temos aqui a marcha da História.

A Hagia Sophia (Santa Sabedoria) era a glória do Império de Trebizonda e ainda exibe numa arcada datas dos finais do séc. XIII.

Diz-se que pode ter sido o lugar de uma igreja obra de venezianos, mas que os comnenos depressa lhe apuseram a ortodoxia.

Sobranceira ao Mar Negro, exibe alguns frescos que se creem ser originais e que vivem, hoje, disfarçados por um teto retrátil que os esconde dos fiéis muçulmanos – o Islão, recorde-se, proíbe a representação do profeta.

Ao contrário dos de Sumela, estes ícones daqui têm todos os olhos à vista, à exceção dos anjos serafins, que os tapam eles mesmos com um dos seus três pares de asas.

O chão, um mosaico serpenteado, também está escondido sob tapetes.

A história é a da irmã maior de Istambul. Foi tornada mesquita pelos otomanos, foi feita museu no séc. XX de Ataturk e da sua Turquia moderna, serviu, diz-se, de hospital em tempos de cólera (séc. XIX) e voltou à condição de mesquita.

Sem deixar de ser museu e de ser um dos melhores exemplos de arquitetura bizantina, com acrescentos pagãos (Pegasus, o cavalo voador) e otomanos. E uma curiosidade: uma torre sineira separada, cuja base ainda é original, que terá tido capela e que foi, muito tempo, posto de observação e farol.

O jardim é um porto de paz, com os gatos do costume, estamos na Turquia, ora, e a vista para a moderna Trabzon, uma urbe perfeitamente indiferente que só não passa ao lado dos roteiros porque tem o aeroporto que serve toda a costa leste turca do Mar Negro.

(İhsan Deniz Kılıçoğlu / Wikimedia)

Porque a História arrasou a História e a glória de Trebizonda foi-se na industrialização daquele que é o maior porto da região e que engoliu o passado medieval. Trabzon é a porta de entrada para Sumela.

E é a cidade que se estendeu de tal forma que engoliu outro registo da História, o mosteiro feminino de Kizlar. Ergue-se, literalmente, entre um emaranhado de casas que parecem ter sido atiradas colina abaixo. E só agora regressou à vida.

Aí, de novo, todos os séculos constroem a História. A base é uma gruta como a de Sumela. Mais funda, menos rica nos frescos, mais destruída pela idade.

À roda, o mosteiro, erguido aos poucos, quando o culto do cristianismo deixou de ser proibido, é atribuído a Alexius III (gostava de mosteiros…) e ao séc. XIV, mas a sua forma atual é, tal como Sumela, do séc. XIX.

É, pode dizer-se, o único segredo escondido de Trabzon, esventrado pelos séculos, tornado centro cultural recém-estreado com uma efémera instalação de espelhos da artista iraniana Shirin Abedinirad, numa ode às mulheres integrada num projeto solidário.

A mensagem é esta: a mulher é obrigada a olhar para baixo ou para frente, a não estabelecer contacto com o olhar, e obedecer; se no chão ou à frente estiver um espelho, verá toda a realidade como ela é; verá o céu e ela nele. Aquele era um mosteiro de raparigas com vista para a cidade indiferente.

O Mosteiro de Kizlar (Dosseman/Wikimedia)

Ou quase indiferente. É uma cidade com a Turquia oriental dentro dela, a Turquia dos narizes aduncos, e com a Anatólia também, e Istambul, a dos gatos – a propósito, e porque é o mais famoso de todos, Gli, o gato (a gata, na verdade) da Santa Sofia de Istambul despediu-se do palco ao cabo de 16 anos a iluminar aqueles mármores.

Em Trabzon, os gatos são venerados como lá, cimentam-lhe gamelas à porta das lojas, enchem-nas de ração, são gordos, todos, e felizes.

Porquê? Porque, diria um habitante de Istambul, “são anarquistas preguiçosos” que se encaixam na perfeição no caos citadino.

A verdade é que dão empatia à cidade, sobretudo a esta, cuja graça é pouca para lá de uma praça sombreada com Ataturk plantado no centro e edifícios corridos que os turcos gostam de comparar à Plaza Mayor de Madrid mas que não tem rigorosamente nada a ver.

Nem a praça nem o caos que a rodeia e que, aqui, esconde outra marca da História que se construiu História com o tempo. A Igreja de Santa Maria.

Andrea Santoro estava ajoelhado na última fila de bancos da pequena igreja católica de Trabzon.

A missa para os cerca de 50 fiéis católicos terminara tranquila. Andrea rezava.

Oguzhan Akdin entrou no templo, ouviu-se allahu akbar e o som de tiros, Andrea caiu, talvez vítima da intolerância. Oguzhan tinha, então, 16 anos.

As notícias não dão conta de um motivo, o jovem terá dito que reagia, na onda de um movimento mundial, às caricaturas de Maomé numa publicação dinamarquesa. Era fevereiro de 2006.

A igreja é, como a cidade, algo indiferente. Não fosse aquele casaco ali exposto no altar, como uma casula à espera de quem a use, três buracos de bala marcados, o fim de uma história que confere àquele templo toda a sua importância: a da Turquia que se quer tolerante.

Este artigo foi publicado originalmente na edição de maio de 2002

A “Volta ao Mundo” viajou a convite do Turismo da Turquia

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