Há uma casa em Santar que é um paço cujos muros debitam mais de 400 anos de história. E há, por ocasião do São Martinho, um menu especial que homenageia tudo o que ele representa.
Falamos do Paço dos Cunhas, construído em 1609, a primeira das casas de traça senhorial que preenchem a freguesia de Nelas em tempos classificada como “Cortes da Beira”, por tantas e tão nobres edificações ostentar entre jardins de contos de fadas.
Idealizado por D. Pedro da Cunha, fidalgo da corte de Filipe II de Portugal, o Paço é apenas um dos que contribui para devolver vida a Santar. Com um jardim que se liga aos outros sete (o projeto brotou na Casa dos Condes de Santar e Magalhães e agregou as outras propriedades) pelo conceito e pelo espaço, quer atrair apreciadores de Natureza e boa mesa a uma vila tranquila e com muito para dar, do vinho à terra.
O convite é para sentar e degustar a terra, o outono, a floresta, até a chuva miudinha, pois então, ao sabor de uma mesa pensada para quatro curtos dias, de 9 a 12 de novembro, pelo chef Alberto Correia e harmonizada com néctares da Casa de Santar e da Quinta de Cabriz pela mestria do escanção André João.
E se a viagem começa com a simplicidade de uma telha muito crocante de arroz e pó de cogumelo regada a espumante Cabriz Bruto Branco, o percurso é toda a complexidade de um passeio pelo mês de novembro no silencioso interior de Portugal, pelos terraços da Santar Vila Jardim criada em 2013 para assentar centenários de um passado nobre sob a forma de sebes e flores. Um passeio pelo cheiro a chão.
Do bosque sai a entrada, terrina de veado, javali e codorniz regada a canja de cogumelo e a Casa de Santar Colheita Tinto 2022. Da floresta vem o puré de castanha que acompanha extraordinariamente o polvo corado em azeite com couve de lombarda crocante.
Ri-se de repente Alberto Correia. Oriundo de Sesimbra, é assertivo, é no interior que se aprecia o melhor polvo, tanto mais se a sua suavidade for realçada pela sensação láctea de um Casa de Santar Reserva Branco.
É nesta altura que picamos Osvaldo Amado, o enólogo da Global Wines, grupo que agrupa as marcas Casa de Santar e Cabriz (Dão) e Quinta do Encontro (Bairrada), entre outras. Então, angolano de nascimento, que nos diz a acompanhar polvo com tinto fresco?
“Sai um Quinta do Encontro Preto Branco”, um néctar do frio, 20% bical 40/40 touriga nacional e baga. “É um branco com cor tinta”. “É a história da Bairrada: antigamente punha-se branco com tinto. E os vinhos eram bebíveis. É a reconstituição de uma época. Enologicamente é uma enciclopédia…”
É uma sorte ter Osvaldo a guiar-nos pelo vinhedo da Casa de Santar antes desta entrega a São Martinho, um passeio aberto a todos mediante marcação, de jipe ou a pé, nós fomos a pé, parámos no Largo do Sobreiro onde um portentoso espécime centenário abriga uma mesa comprida e segura nos braços um baloiço gigantesco, verdadeiro, daqueles pendurados em árvores, a olhar as linhas perfeitas da vinha, infinitas, verdes ainda, silenciosas sob a chuva. Porque degustar a arte do chef também pode ser por ali, em modo piquenique, se não chover, claro.
E ter Osvaldo no outono a falar-nos do outono de Santar é uma lição. É o vinho que manda vir a meio do prato de carne. Antes, mostrara-nos as uvas, a colheita tardia da Casa de Santar, “o Sauternes português”, o fungo botrytis cinerea, a “podridão nobre” do bago, prova, não, não separes, come tudo, é um estalar de doçura no paladar, a mesma que se repete no vinho.
Pediu-o porque o lombinho de vitela vem com foie gras selado e esse clama por aquela exceção chamada mesmo “Outono de Santar” e de que só há 4000 a 5000 garrafas de 37,5cl de uma vinha que podia dar 30 mil de 75cl se a opção não fosse fazer da Casa de Santar “o verdadeiro chateau de Portugal”.
Mas vem do campo, esse outono. O outro, que no menu acompanha a carne com o puré trufado, vem da floresta que rodeia as vinhas, o Casa de Santar Reserva Tinto de 2016. “Representa o que o Paço é, o que é bom, o que é bonito”, resume André João.
A Colheita Tardia deveria acompanhar a maçã bravo de esmolfe de Penalva em tartelette com gelado de romã e jeropiga, mas Osvaldo já a arrumou na sua paixão pelo trabalho, ele que sonhara ser piloto e acabou a “navegar pelo chão” numa formação de engenharia agrícola que o levou em altos voos pelo mundo vinhateiro. Osvaldo sugere então o Cabriz Ímpar, um tawny do Dão com 20 anos saído da garrafa 456 de 1001.
Ao cabo de 37 vindimas, 600 milhões de garrafas e mais de 350 medalhas, fala de um vinho e de um terroir como uma criança apaixonada. Fala do melhor espumante de 2022, o Blanc de Blancs Vinha dos Amores, esse lugar na encosta que acobertava namoros secretos da Santar de antanho, um vinho de encruzado cuja bolha “parece um relógio suíço a debitar milésimos de segundos” após 60 meses de estágio “sur lie”.
Fala do Vinha dos Amores Touriga Nacional, um monocasta que se constrói de uvas apanhadas em alturas diferentes numa vinha que vai dos 200 aos 350 metros de altitude, para lhe conferir complexidade.
E fala, finalmente, do Oito Parcelas Tinto 2012, um mistério tirado das oito melhores das 29 parcelas da Casa de Santar (“ter bom vinho é ter boa uva”), agora em primeira edição, porquanto a ideia nasceu ali em 2012 e o vinho estagiou nove anos em garrafas. “Tem notas terrosas, mas das boas”. Confirmamos. Diz ele, se fosse caso de não termos percebido o que tínhamos na mão: “Tenho inveja destes vinhos. Aguentam mais dez ou vinte anos. Eu não aguento tanto…”.
Paço dos Cunhas Largo do Paço, 28, Santar; tel: 232 945 452; [email protected] Menu especial de São Martinho com harmonização, de 9 a 12 de novembro, a 55 euros; experiências de enoturismo ao logo de todo o ano: visita à adega e prova a partir de 20 euros; com passeio a partir de 45 euros; com piquenique ou almoço a partir de 60 euros.
A Quinta de Cabriz (Quinta das Sarzedas, Carregal do Sal, tel: 232 961 222; [email protected]), também do grupo Global Wines, oferece um menu especial de São Martinho por 43 euros.