Foto: Roslan RAHMAN / AFP

Ao final da manhã de 23 de março de 2023, o voo DT-652 da TAAG deixou o aeroporto de Luanda, com destino a Lisboa. O céu limpo fazia prever uma viagem tranquila. E assim foi até o avião sobrevoar a República Democrática do Congo e o almoço ser servido.

Subitamente, uma série de solavancos atirou copos de vinho, talheres, latas de refrigerantes e tabuleiros pelo ar. As carrinhas de serviço foram projetadas para o fundo do corredor, as bagagens de mão caíram por todo o lado, os passageiros chocaram uns contra os outros, bateram com a cabeça no teto, tropeçaram, gritaram e temeram o pior.

As sacudidelas dentro do avião duraram menos de meio minuto, o suficiente para fazer 10 feridos ligeiros, assistidos por uma equipa médica no aeroporto Humberto Delgado. Poder-se-ia pensar que se tratou de um azar, sem consequências de maior gravidade. Mas este não foi o primeiro nem sequer o mais recente episódio de turbulência severa que agitou as viagens de avião em 2023.

Os vídeos nas redes sociais, volta e meia, mostram a turbulência a chocalhar aviões como rocas nas mãos de bebés. Um voo da Lufthansa fez, em março, uma aterragem de emergência em Frankfurt, na Alemanha. Sete passageiros da Air India saíram, em maio, a coxear ao chegar a Sydney, na Austrália. Em finais de agosto, um avião da Iberia com destino a Alicante, em Espanha, voltou para trás, até à ilha de Maiorca, depois de enfrentar correntes cruzadas de ar de 130 km/hora.

Do verão até à entrada do inverno, a turbulência ocorrida a alta altitude deixou um rasto de notícias, dando conta de viagens interrompidas, passageiros assustados e tripulações stressadas. Mas, com a falta de dados globais, o mais sensato será ficar por aqui para não tornar a leitura demasiado penosa. Tentando, aliás, desanuviar o ambiente, convém esclarecer que, em momento algum, os aviões, nestas circunstâncias, correm o perigo de cair. Essa é a boa notícia. A má é que as alterações climáticas estão a tornar os céus cada vez mais imprevisíveis. O mais certo, por isso, é a turbulência continuar a aumentar.

Foto: Ramon van Flymen / ANP / AFP) / Netherlands OUT

A IRA DOS DEUSES
Ainda em junho do ano passado foi publicada mais uma investigação, conduzida na Universidade de Reading, na Grã-Bretanha, comprovando, no fundo, as suspeitas de trabalhos anteriores. Segundo o estudo “Evidências de grandes aumentos da turbulência em céu limpo nas últimas quatro décadas”, as correntes, ao nível da troposfera, andam muito mais conturbadas do que há 40 anos. Os cientistas concluíram que o fenómeno tem vindo a aumentar à medida que o clima aquece.

E não se trata apenas de episódios leves ou moderados, mas especificamente de turbulência severa ou Clear-Air Turbulence (CAT, sigla em inglês para turbulência de céu limpo). Significa isto que momentos como os que os passageiros da TAAG, da Air India ou da Lufthansa passaram podem surgir do nada.

A turbulência severa não precisa de tempestades ou chuva para provocar o caos entre as nuvens. Invisível para pilotos e meteorologistas, não é ainda detetada nos radares. A única previsibilidade que apresenta é ocorrer com maior probabilidade acima dos 39 mil pés – a altitude de cruzeiro da maioria dos voos comerciais. Rotas aéreas sobre a Europa, Médio Oriente e Atlântico Sul são frequentemente atingidas por turbulência severa, mas foi no Atlântico Norte que o fenómeno registou o maior crescimento.

A duração anual, segundo os dados citados no estudo, passou nesta região de 17,7 horas, em 1979, para 27,4 horas em 2020, um aumento de 55%. A duração média de cada episódio está também a subir a pique. Atualmente, num voo transatlântico, a turbulência – severa, modera- da ou leve – dura em média dez minutos. Em pouco mais de uma década, no entanto, esse tempo deverá chegar aos 20-30 minutos. Não há como negar que viajar de avião já é hoje uma experiência bem diferente do passado. Mas o que se prevê para as décadas que se seguem é o dobro ou mesmo o triplo da quantidade e da duração de turbulência. A emissão dos gases com efeito de estufa está intimamente ligada aos sobressaltos dos passageiros. Ao provocarem o aquecimento do ar, geram mudanças repentinas na velocidade e direção do vento, originando correntes de jato ou, usando o jargão dos meteorologistas, jet streams.

O CASTIGADOR EL NIÑO
Estando o clima do Planeta atualmente afetado pelo El Niño e prevendo-se que o fenómeno se prolongue até à primavera de 2024, o expectá vel é a navegação aérea se deparar ainda com mais obstáculos. O estudo da Universidade de Reading descobriu também que, perante um evento forte de El Niño, as probabilidades de turbulência – moderada ou severa – aumen- tem em 50% no Atlântico Norte. Por mais rotas alternativas que se procure, todos os caminhos acabam invariavelmente no mesmo beco: os gases com efeito de estufa. São eles que estão a arrefecer a atmosfera, a tornar o El Niño mais frequente e a causar maiores turbulências nos céus, entre muitas outras alterações pelas quais o Planeta atravessa. E o transporte aéreo, já agora, é responsável por cerca de 3% das emissões globais

O setor da aviação terá forçosamente de aperfeiçoar as ferramentas de previsão, advertem os autores do estudo. Os modelos meteorológicos, os radares e os relatos dos pilotos são pouco eficazes a antever a localização exata e a intensidade da turbulência. Mas, nos Estados Unidos, por exemplo, o Centro Nacional de Investigação Atmosférica já está a trabalhar em tecnologias para detetar a turbulência em tempo real. Um algoritmo instalado em aviões comerciais analisa a informação recolhida por sensores a bordo, caracterizando o movimento do aparelho em todos os momentos do voo. Analisando variáveis como a velocidade do vento e da aeronave, a pressão atmosférica, entre outros fatores, o algoritmo gera um nível de turbulência para cada troço do corredor aéreo, que é transmitido para um sistema nacional.

O instrumento está atualmente a ser usado por cerca de 12 mil pilotos da Delta Airlines nas suas rotas de voos domésticos. Espera-se ainda que, no decorrer de 2024, o modelo venha também a ser adotado por outras companhias internacionais, como a Qantas, a Air France e a Lufthansa. A Boeing, entretanto, também começou a disponibilizar o algoritmo como opção nas suas novas aeronaves.

A turbulência, por natureza, é caótica, exigindo uma enorme capacidade informática para se entender como surge e como se comporta a elevadas altitudes. E essa é também a missão de Fugaku. O segundo super-computador mais rápido do Mundo – o primeiro é o americano Frontier –, desenvolvido pela Universidade de Nagoya, no Japão, conseguiu, no verão deste ano, replicar com precisão a turbulência atmosférica observada em dias sem nuvens no espaço aéreo de Tóquio. A expectativa é que os resultados destes testes possam contribuir para compreender com maior profundidade o princípio por trás da formação da turbulência. O avanço poderá ajudar a localizar e a evitar com antecedência as rotas e as altitudes onde ela ocorre.

Foto: Lillian SUWANRUMPHA/AFP

O DILEMA DA AVIAÇÃO
O problema, em boa parte, estaria resolvido com a tecnologia inovadora que poderá entrar em breve na indústria da aviação. Mas não se menospreze um aspeto da maior importância. As novas rotas para evitar a turbulência podem ter custos ainda maiores para o ambiente e para a saúde financeira das companhias. Dar prioridade ao conforto dos passageiros poderá implicar percursos mais longos, aumentando não só as emissões como os tempos das viagens e os atrasos nos aeroportos. A trajetória iria entrar em colisão com todos os compromissos que as companhias aéreas têm vindo a assumir para reduzir as emissões através da otimização dos voos e da adoção de biocombustíveis. O dilema será, portanto, saber que a rota de voo ideal pode ser a mais atribulada e decidir seguir ou não na direção oposta.

A aviação está, no presente, a estudar a necessidade de ajustar as fuselagens para tornar os aviões mais robustos e resistentes, mas os especialistas advertem que as mudanças nesta indústria são lentas. As aeronaves que hoje estão a ser desenhadas são as mesmas que esta- rão ainda a voar nas décadas de 2050 e 2060. A resposta para viagens tranquilas continua, por isso, igual para a maioria dos desafios ambientais. Reduzir as emissões de gases com efeito de estufa é o plano de voo mais longo, mas com maiores probabilidades de ser bem-sucedido.

Até esse dia chegar, “Fasten your seat belts, it’s going to be a bumpy night”, já dizia Bette Davis, em 1950, no clássico “All about Eve”. O tempo, infelizmente, deu-lhe razão.

Foto: Brendan Smialowski /AFP

DESINCENTIVAR VIAGENS PARA DESLOCAÇÕES INFERIORES A TRÊS HORAS

As estimativas mais consensuais colocam a participa ção da aviação comercial nas emissões globais de CO2 em 2,4%. Mas os espe cialistas alertam também para os impactos colaterais, como os óxidos de nitro génio (NOx), vapor de água, partículas e rastos produzidos pelas aeronaves, responsáveis por cerca de 5% do aquecimento global. Ao setor atribui-se entre 4% e 9% do impacto total das atividades humanas nas alterações climáticas.

Em comparação com outras indústrias, o contributo da aviação é proporcionalmente pequeno para as emissões globais de efeito estufa, mas também está entre as que cresce mais rápido. Em 2022, os números ultrapassaram largamente os níveis pré-pandémicos, atingindo os sete mil milhões de passageiros, segundo as estatísticas da Airports Council International, prevendo-se uma subida anual de 3,7% até 2040.

A indústria da aviação está por isso sob pressão, com boa parte dos países europeus a implementar políticas mais agressivas para combater a sua pegada na forma de impostos pagos pelo passageiro ou pelas companhias. Áustria, por exemplo, aumentou as taxas sobre os voos de três para 12 euros. França introduziu um imposto ecológico que pode ir dos três aos 18 euros, consoante a duração, o destino e a classe. O governo alemão implementou aumentos entre 40% e 75% nas taxas de voos de curta, média e longa duração.

A Suécia – a pioneira do movimento flygskam (vergonha de voar) – introduziu taxas aeroportuárias para aviões altamente poluentes, levando em consideração, no cálculo dos encargos, o impacto ambiental, como o uso de biocombustíveis. Portugal também adotou, em julho de 2021, a taxa de carbono, com um valor fixo de dois euros cobradas pelas
companhias aos passageiros.

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