“Só existe uma viagem: a viagem da nossa vida”.

E o que pode ser ser a viagem da nossa vida? David Freitas começa lá longe, atira ao tempo em que começou a crescer, a mudar de aspeto, da criança reguila ao adolescente com ar de nerd cuja imagem adora, terminando em aberto, num percurso que ainda terá muito que dar.

No meio desta sua viagem em curso, David fez outra, uma em particular, uma viagem que o mudou para sempre e que marca a viragem que a viagem da vida dele deu. Complicado? Não. Porque David é um homem em construção.

David esteve em Guimarães a contar essa viagem em particular, mas aquilo que David ofereceu à plateia do segundo dia do Travel Fest da Associação de Bloggers de Viagem Portugueses (ABVP) foi uma lição global. Com a mais absoluta das honestidades e uma pungência que deixou nós em várias gargantas.

Porque David com um fito: viagem para os outros. Hoje, trabalha com a ONGD Rota dos Povos, mas começou sozinho, com o projeto Ambulance For Hearts, porque, geek dos números, ficou chocado com os que retratam a Guiné-Bissau. Uma em cada 12 crianças não vive até aos cinco anos.

Decidiu ir de ambulância até Catió, porque era ali que a Rota dos Povos de que ouvira falar atuava, comprou uma Hiace que lhe cabia nas músicas com que pinta a vida toda (tudo é cantável, tudo é poesia e Marco Paulo é o maior poeta de todos), chamou-lhe Carrinha Laroca, inspirado em Tony Carreira, e andou com ela cinco minutos. Avariou.

Comprou um jipe e chamou-lhe Jeep C. Quim e enfiou nele as mais de 500 latas de leite em pó que conseguiu comprar com donativos dos alunos (é professor de informática em Gondomar) e mais uma incubadora e uma data de outra coisas e fez-se ao caminho.

A viagem foi a travessia até à Guiné-Bissau, com um ukelelé para cantar Marco Paulo com pessoas cruzadas pelo caminho, com a aventura da terra de ninguém entre o Saara Ocidental e a Mauritânia e as minas que há fora dos trilhos, entre carcaças de carros rebentados, com a chegada a Catió e com aquele momento em que conheceu pessoalmente Anabela, a menina que perdera a mãe no parto quando David imaginou o projeto e cuja fotografia lhe fora enviada da Casa de Mamé, o orfanato para onde levava material.

David ri-se perdidamente, a viagem da vida dele é um caso perdido de humor, e emociona-se quando no ecrã gigante surge uma imagem dele com Manuel pela Mão e Anabela às costas. Anabela não aguentou. Morreria naquela noite.

David despede-se com “Ninguém Ninguém” e Marco Paulo a revelar-se portador de uma mensagem que todos perceberam: ninguém pode mudar o Mundo, ninguém é mais forte que o amor, mas se cada um deixar uma memória na alma de alguém, algo mudou.

Viajar com um propósito. A mensagem foi transversal a todo o festival. E um propósito pode ser levar leite a Anabela, ou pode ser construir um laço indestrutível com um filho, como o fotógrafo José Silva Pinto conseguiu quando se meteu Angola abaixo e adentro até chegar às tribos de Oncácua.

No seu rasto deixou retratos ímpares de lugares e gentes, deixou histórias pintadas, a maior delas sobre a sua história de amor com o país que é dele. Angola. E uma emoção indescritível sempre que pronuncia o nome do filho. André. Esta será seguramente a viagem da vida de José – ver André viver.

Como será a viagem da vida de Thor Pedersen aprender que a persistência compensa, que a teimosia acaba resulta, que bater no fundo, ajoelhado na terra vermelha de África, fica a um mês da total felicidade, de braços abertos a olhar essa terra vermelha.

Thor já era conhecido, mais ganhou a maior das famas no dia 26 de julho, quando regressou a casa, na Dinamarca, dez anos depois de lá ter saído com um propósito. Louco, é certo, porque Thor só queria ser o primeiro a conseguir ir a todos os países do Mundo sem apanhar um único voo.

Conseguiu, sofreu como um cão, em muitas ocasiões, ficou dois anos retido pela pandemia em Hong Kong, teve de arranjar emprego e pagar os empréstimos que foi contraindo para compensar a perda de patrocinador, porque a saga de Thor passou muito além da expectativa inicial de quatro anos.

Admite. Começou por ser 99% aventura e 1% trabalho. Com os anos, a viagem transformou-se em 99% trabalho e 1% aventura. Ele que não tinha sequer ido tão longe quanto a Alemanha encontrou-se sozinho no Mundo, com três condições auto-impostas: não voar, passar pelo menos 24 horas em cada país do Mundo e não regressar a casa por desistência.

“Um estranho é um amigo que ainda não conheceste”, resume, em jeito de slogan. Porque o que a aventura lhe trouxe foi a bondade das pessoas em todo o Mundo, à frente das quais está a esposa, deixada namorada na Dinamarca, quase perdida pelo caminho, e desposada no Quénia.

Foram 203 países – o que é um país?, pergunta Thor, na senda da questão que ouvíramos de Guilherme Canever, o brasileiro que viajou com o propósito de conhecer os países que não existem oficialmente, esses lugares fruto de conflitos e de fronteiras onde ninguém vai por receio infundado que conta num livro viciante -, 320 mil quilómetros (uma vez da Terra à Lua) e o desejo de regressar aos lugares onde deixou as memórias de que falava David.

Viajar com um porquê. “Focar-se no porquê é encontrar o próprio caminho”, tinham avisado no primeiro dia do ABVP Travel Fest Dave e Deb, o casal canadiano que perserverou tanto na viagem que ganhou lugar entre os dez viajantes mais influentes do Mundo, segundo a Forbes.

A festa regressa em maio de 2024, de novo no Teatro Jordão, em Guimarães.

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