A viagem de um pai com um filho, através de uma Angola selvagem, costa abaixo e terras adentro, à descoberta do reencontro, à descoberta de esqueletos de ferro e da simplicidade tribal, conta-se em imagens. Porque José Silva Pinto não escreve. “Cada um é livre de inventar a história daquela fotografia.”
Havia um concurso que animava as horas, longas, das noites e dos dias: “Quem cheirava pior?” “Acho que ganhei”, acredita José Silva Pinto, que levou para aquelas paisagens infinitas da Angola desconhecida uma companhia especial: o filho, André. Não foi uma, foi a viagem especial, de Luanda a Oncócua. Porque foi de encontro. E de reencontro.
O trajeto seguia lugares que José conhecia e queria partilhar com André, que nasceu e cresceu em Lisboa, mudou-se para Luanda para ali viver 12 anos, até se apaixonar e regressar à capital portuguesa.
“Tínhamos laços, mas era uma importante voltar a conectar. Havia muita coisa dele que eu não sabia e muita coisa minha que ele não sabia.” A proposta de José a André foi simples: “E se fôssemos por aí fora?”. O pai seria o chauffeur, o filho o passageiro, por “20 e poucos dias”. “Aquela viagem tem muito a ver comigo. Foi o reencontro com o André.
Eram 24 horas juntos. Nem sempre correu bem. Lá está, cheirávamos mal, era eu e ele, ele dizia que era eu. Embora eu não invadisse o espaço dele, nem ele o meu, há dias em que não acordas da mesma maneira”, conta José, enquanto desfia as fotografias que, fotógrafo ele, fotógrafo o filho, relatam a aventura.
De Luanda a Oncócua passa-se por Benguela e segue-se para a velha Moçâmedes, hoje Namibe, porta de entrada para o deserto mais antigo do Mundo e, em particular, para o Parque Nacional de Iona, que se enfia no Atlântico com dunas grandes e perigosas. Não elas, as marés que as abraçam e que escondem a estrada a cada ida e vinda.
“A passagem só se faz durante quatro horas, quando a maré está baixa. Se não conseguires em quatro horas, morres” – José não é homem de meias-palavras. De Luanda a Oncócua pode dormir-se no Flamingo Lodge, um retiro simples a meio caminho do “lugar vasto e ermo” que é o deserto do Namibe, mas muitas noites de José e André foram ao ar livre, em tendas, “cada um na sua”, há aquela questão da competição. Porque não há melhor nascer do sol do que o do ar livre.
De Luanda a Oncócua atravessa-se Tombwa, antiga piscatória Porto Alexandre, rebatizada com o nome local da estrela da região, a welwitschia, esse gigante das areias em forma de flor. E passa-se por Vanessa, um barco de pesca tornado esqueleto, semissepultado na areia como as dezenas de confrades que se espraiam costa abaixo, Namíbia adentro. “Só fez uma viagem.
O capitão deve ter achado que dava motor a fundo e só parou aqui. E ficou.” Belo e morto. De Luanda a Oncócua passa-se, também, por muito de belo e vivo. “Eu não sei os nomes destes bichos. São os manéis e outros são os antónios.” Podem ser pássaros marinhos, focas, flamingos. E mais coisas belas e mortas, depois da foz do Cunene, no fim de Angola e no princípio da Namíbia, as casas às cores, isoladas.
“Casa azul é polícia, casa cor-de-rosa é do Estado. As outras, sem cor, são as nossas”, dos angolanos, o Ford fossilizado no meio do deserto, “do tempo da saída dos portugueses, de um que levou a família a caminho da Namíbia e avariou aqui”.
De Luanda a Oncócua acaba-se em Oncócua. Entre os himbas, os batwa, os sobas que ajudam a entrar dentro das aldeias, as aldeias que exigem tempo. “Quero voltar, ficar cinco meses.” Perceber as mulheres que tomam banho de fumo, que mandam, que constroem as casas, tomam conta dos filhos, que são de todas elas, dos homens que bebem e tomam conta do gado.
De Luanda a Oncócua são 12 dias. O regresso é sempre menos contemplativo. Menos fotografado. Mas também não é para isso que José viaja. Esta viagem fê-la para estar com André – não será o verbo “estar” um dos mais difíceis de conjugar nestes tempos vorazes?
“Eu não viajo para fotografar. Nem escrevo. Cada um é livre de inventar a história daquela fotografia.” Porque fotografar é, para José, um trabalho que o desviou de uma carreira de engenheiro viandante que já não o preenchia. Um trabalho que hoje partilha com André, que desafiou a experimentar a câmara e que viu especializar-se em pós-produção, ao ponto de ambos gerirem, à distância, uma empresa de fotografia de produto. A paixão pela objetiva foi descoberta a meio caminho da vida.
Em 2000, entre uma campanha no Vietname e outra em Moçambique, passou em Portugal para o Natal. As escalas puseram-no uns dias em Paris. E foi ali, numa montra que o atraiu por alguma obscura razão, que viu uma câmara. Comprou.
A prazo, a ida para Moçambique foi intercalada com uma substituição em Angola. Ia, na altura, com “20 anos com o saco às costas”. Ficou em Luanda. Até hoje. “E em 2004 parei com tudo e comecei a fotografar. Um dia deu-me um ‘vaipe’ e mandei um CV para a Chevron. E fui chamado. Nunca mais parei. Pago a vidinha, as cuecas e as calças que uso, com a fotografia.”
Formação? Nunca. “Nem recomendo a ninguém. Porque ninguém pode ensinar a ver. Só tu. Fotografar é ver. É o resultado da forma como cresceste e vives. Dos filmes que vês e daquilo que tu és. Ou sentes ou não sentes. E todos sentimos de maneira diferente. Em Angola não gostam da minha fotografia – dizem que sou ativista, porque fotografo o que vejo, essencialmente pessoas, e muitas vezes estão tristes. É um bocado a preto e branco, é o que vejo. Acusam-me de denegrir Angola. Mas só mostro aquilo que vejo e a realidade é aquilo.” A parte técnica, diz, está nos manuais, “é ir testando”