Foto: Pedro Ivo Carvalho/Volta ao Mundo

Vera repousa o olhar no mar chão, enquanto desfia um rosário de histórias sobre a desova das tartarugas na baía. De como naquela praia defronte do Murdeira Villa Resort, na ilha do Sal, há várias estacas enfiadas no areal que atestam a presença do animal-talismã de Cabo Verde.

As mães tartarugas desembarcam de madrugada, e só podemos imaginar que naquele silêncio que nos embala de dia a aventurança dos répteis de carapaça dura seja audível quando a noite se insinua. Que as suas passadas, marcadas no vaivém da rebentação envergonhada, ecoem toldadas pelo magnífico luar.

“Esta praia é um santuário de tartarugas, razão pela qual não podemos mexer em nada”, enfatiza a nossa anfitriã. Não que fosse preciso, porque está tudo no devido lugar, mas a enorme quantidade de pedras naquela piscina natural torna a experiência balnear menos glamorosa. “Elas é que mandam aqui”, confessa, entre sorrisos, Vera de Bettencourt, ex- treinadora de futsal feminino que já teve um restaurante no Alto Minho e é, há uns anos, gerente daquela unidade hoteleira onde se pode nadar numa piscina de água salgada, com vistas para o mar… salgado.

Serve-nos cachupa num alpendre, mesa longa, vinho verde de estalo, no horizonte as nuvens cinzentas são um mero engano, porque o calor e a humidade afundam-nos na cadeira, à medida que o palato vai descobrindo novos sabores naquele prato-bandeira de Cabo Verde. O Sal é um doce caminho até ao mar, que devemos fazer a passo de tartaruga. O Sal são os saltos destemperados dos miúdos no pontão de Santa Maria, os homens de tronco rijo que amanham o peixe, o frenesim das frágeis embarcações que emolduram a água tépida do longuíssimo areal.

É domingo na praia de Santa Maria e a agitação é evidente: jovens adolescentes assomam, eles e os cães, sempre muitos cães, uns para entrar num desafio improvisado de rimas, outros para jogar voleibol ou beber uma cerveja gelada no bar que pede aos visitantes mais agitados para darem com a cabeça na parede caso não consigam abraçar o conceito nacional de “no stresse”.

São dezenas os miúdos e, por momentos, os ânimos exaltam-se, quando um dos lados da barricada parece ganhar o braço de ferro do espetáculo musical instalado no coração da praia. “Ohhh, ei, ohhh, ei!!”, entoam, bem alto, num crioulo encantatório. Podemos ficar ali horas a fio, a entrar e a sair do mar, a ouvi-los cantar, num caos organizado que consegue ser acolhedor. Yannick, o nosso guia, marcara encontro ao final da tarde.

Foto: Pedro Ivo Carvalho/Volta ao Mundo

Foi buscar-nos ao Hotel Melia Dunas Beach Resort (o maior complexo hoteleiro de África). Fomos aconselhados a levar roupa escura, nada de perfumes, a curiosidade virgem. A desova das tartarugas obriga a um ritual escrupuloso. Andamos alguns quilómetros por estradas ondulantes, até começarmos a ver o mar. As luzes do autocarro desligam-se e somos levados apenas pelo gordo luar. O motorista podia fazer aquele trajeto de olhos fechados, tantas são as vezes que o galgou.

Chegamos à praia, situada a sul da ilha, e somos confrontados imediatamente com as luzes vermelhas que os vários voluntários de uma associação ambientalista local manuseiam para não assustar os bichos no pináculo da maternidade. Sem dizer uma palavra, caminhamos, no breu, pelo areal, em fila indiana. Yannick tem a certeza de que vamos poder assistir à desova, e ao longo do trajeto as estacas que marcam os locais dos “partos” são bem a prova de que a espontaneidade da mãe Natureza também consegue ter hora marcada.

Já no lugar previsto, e durante uma hora, aninhamo-nos sem mexer um músculo, espectadores dos movimentos de uma enorme tartaruga que deposita, e camufla, numa cama funda de areia, largas dezenas de filhotes. Apenas um ínfima parte daquelas pequenas tartarugas triunfará: umas porque não eclodem devidamente dos ovos, outras porque são comidas por predadores no penoso caminho até ao mar, outras porque são devoradas logo à entrada do mesmo mar.

Foto: Pedro Ivo Carvalho/Volta ao Mundo

Na realidade, de tudo o que pudemos vivenciar no Sal (e os postais foram todos visitados), esta é a experiência que, de forma metafórica mas eficaz, melhor ajuda a traduzir o espírito dos cabo-verdianos. A tremenda bravura com que enfrentam a pobreza, as desigualdades e falta de acesso a pequenas mordomias, enquanto fazem os possíveis para tornar a estadia dos turistas (que são quem, na verdade, vai sustentando a frágil economia da ilha) o mais prazerosa possível.

Ruth Martinho, da Grão d’Sal, portuguesa convertida àquela terra há uma dezena de anos, encontrou uma frase conforto para arrumar a conversa: “Aqui podemos não ser cabo-verdianos, mas tornámo-nos cabo-verdianos”.

Foto: Pedro Ivo Carvalho/Volta ao Mundo

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