É um dos fundadores da agência Papa-Léguas e, à beira dos 50 anos, não se livra do vício das viagens. Encara os atuais desafios do Covid-19 com cautela e preocupação, mas não vai virar a cara à luta. E já tem trunfos na manga para os próximos tempos.
Entrevista de Ricardo Santos
Há quantos anos dura a aventura da Papa-Léguas?
A.P. A Papa-Léguas vai fazer 22 anos oficialmente, a 4 de maio.
Vai ser um aniversário diferente.
A.P. Vai ser um aniversário completamente confinado, se o estado de emergência não for levantado. Vai ser diferente, mais que não seja porque não há clientes. Sinto-me totalmente algemado. Isto é um negócio, mas é uma paixão também e continuo a sentir-me um puto, apesar de este ano fazer 50 anos. Continuo a ter aqueles nervos miudinhos, continuo a adorar descolar e aterrar num avião. É a adrenalina, mas vai ser diferente porque é uma situação que nenhum ser vivo no planeta viveu. O pessoal da Gripe Espanhola já não deve estar cá ninguém. É uma situação estranha e eu, que me considero otimista, tenho dias que penso naquela frase: “um pessimista é um otimista bem informado”.
Ainda tivemos um rasgo de otimismo quando a Ásia começou a reabrir, mas não foi bem assim.
A.P. Eu ia muitas vezes ao Japão e continuo a seguir muito os blogues. Em Hokkaido, a ilha mais a norte, tiveram uma atuação irrepreensível, levantaram o recolher obrigatório há quase um mês, mas tiveram que o colocar outra vez. O que se passa é que isto vai andar aqui aos altos e baixos e é isso que me assusta. Não me assusta enquanto pessoa porque, mais tarde ou mais cedo, nós teremos contacto com o vírus, se não for descoberta a vacina. Assusta-me mais a insegurança e tudo o que vem atrás dela. Começa a haver atitudes irracionais. Este vírus acaba por ser uma caixa de Pandora e não só nas viagens, que são uma das pontas do icebergue. Se olharmos para o nosso quintal e depois para o do país vizinho e para a Europa, o meu medo é que se volte às fronteiras dos anos 30, que haja um desagregar daquilo que foi construído. É isso que mais temo, do ponto de vista do viajante mais do que de vendedor de viagens. Tenho muito medo de as minhas filhas (uma de 20 anos, outra de 18) não terem a liberdade de viajar que nós tivemos. Ou que ainda temos. Ou que pensamos que temos.
Isso é assustador.
A.P. É mesmo. Há coisas que não sabes como é que vão funcionar a partir daqui. Não sabes como os países se vão comportar.
Será que vamos voltar a ter de apresentar de forma obrigatória um Boletim Internacional de Vacinas, por exemplo?
A.P. É provável. Acredito que vai haver um conjunto de medidas, pelo menos numa primeira fase (dois, três anos), do ponto de vista do viajante ou do empresário de viagens, ou do vendedor de sonhos, que vão ser muito difíceis planear. Que viagens é que nós vamos apresentar? Se calhar, sozinho, vou, mas com um grupo não vou. Pode começar a haver uma xenofobia sanitária, para proteção ou falsa proteção de cada país. Isso preocupa-me.
Como é que a Papa-Léguas, no meio desta crise, se está a reinventar?
A.P. Não é nada fácil. A Papa-Léguas é um projeto por cumprir, ainda. Abriu em 1998, formada por duas pessoas – eu e a Luísa Tomé – e neste momento é a parte visível em Portugal. A Papa-Léguas tem outra marca, a 09ºWest, para aquilo que se chama incoming. Nós recebemos cá, sempre na área do turismo de aventura, seja lá o que isso for, de turismo ativo. Somos recetivos. Sobretudo trabalhamos muito com o mercado americano, empresas como a National Geographic Expeditions, coisas desse género. Tentamos mostrar Portugal a grupos pequenos. Quando o estado de emergência foi colocado, a nossa preocupação baseou-se em dois setores: primeiro, tentar explicar aos nossos viajantes que a Papa-Léguas é uma empresa que está financeiramente bastante estável, numa perspetiva razoável de tempo. E foi comunicado às pessoas que tinham reservas connosco. Os primeiros dois meses do ano estavam a ser incríveis. A segunda situação tem que ver com a forma como criámos a empresa, há mais de 20 anos. Éramos considerados malucos porque ninguém ia pagar para andar de mochila às costas, mas desde sempre assumimos que viajar é o ato sublime de fazer pessoas felizes. Isto dito assim parece um bullshit statement, mas não é.
«A normalidade só vai ser atingida quando nós acharmos normal a anormalidade que está a acontecer.»
É o que se procura em cada viagem, certo?
A.P. Sim e pode ser alcançado multidisciplinarmente.
Pode ser num resort de Tudo Incluído ou no alto de uma montanha.
A.P. É isso mesmo. Seguindo essa filosofia definimos três ou quatro princípios: partilhar, inspirar e fazer com que os outros se revissem naquilo que fazemos. E é o que estamos a fazer agora. Disse à minha tribo: este não é o momento para vender nada a ninguém. Vamos dizer às pessoas que estamos cá, dar-lhes esperança, fazê-los sonhar. Pelo menos isso, deixem-nos sonhar. Estamos a fazer Conversas de Sofá entre viajantes, newsletters (aumentámos a periodicidade), os posts somente para inspirar, sem referência a viagens concretas. É a forma de dizermos: pessoal, estamos aqui. Isto é muito parecido com as ondas de choque de um atentado. Não vai ficar tudo bem.
Nem voltar à normalidade.
A.P. A normalidade só vai ser atingida quando nós acharmos normal a anormalidade que está a acontecer. Vai haver uma altura em que vais achar isto normal. É como aqueles pássaros que estão na gaiola e acham que voar é uma doença. Aí entra o vosso papel e o nosso, enquanto revista que vende sonhos. Não podemos perder isto. Vocês são os últimos soldados do papel neste panorama da imprensa portuguesa, que está como toda a gente sabe. São importantíssimos para fazer a malta sonhar. Eu tenho a revista zero da Volta ao Mundo.
«Tenho muito medo de as minhas filhas não terem a liberdade de viajar que nós tivemos. Ou que ainda temos. Ou que pensamos que temos.»
Vocês abriram o caminho para muitas outras empresas.
A.P. Sim, tenho essa noção. Não imaginas como foi difícil naquela altura colocares as viagens de avião separadas do preço da viagem. Fomos os primeiros a fazer em Portugal, mas não inventámos nada. Cá chamaram-nos tudo, que enganávamos as pessoas.
Qual tem sido o feedback dos viajantes?
A.P. Numa primeira fase senti pessoal genuinamente interessado em nós, enquanto pessoas. Na última semana e meia as coisas, em termos de reservas, ficaram mais frouxas. Tivemos uma reserva para a Jordânia em novembro. E já está a decorrer, em Itália, uma viagem para italianos. A vontade de viajar não desaparece, isto é uma droga potentíssima, snifas linhas de aeroporto, mas é a questão da sensação de segurança. Dizem que a malta das viagens é resiliente, mas há muitos Indiana Jones de sofá.
Há muito show off?
A.P. Imenso. Hoje ainda mais. Não sou Polícia nem ASAE, mas hoje tens muita gente que faz um blogue e já está. Aqui há uns anos havia um tipo que levava pessoas e seguia o nosso programa. Esta malta, quando tudo corre bem, não há problema. Quando alguma coisa falha, convém que tenhas algum traquejo para resolver as coisas. Tenho ouvido cada coisa…
Falando de coisas positivas, que mensagem é que a Papa-Léguas tem para os viajantes?
A.P. Há coisas que continuam a ser gratuitas, como sonhar. Aquilo que aconselho a fazer é viajar através de vídeos, que são de babar. Há livros e foi assim que comecei a viajar. Quem está em casa, é aproveitar para pesquisar e ler a Volta ao Mundo, atuais e antigas, para ver o que estava em voga. E às vezes nem sabes por que é que um destino está na moda. Se calhar, é por vossa culpa.
